Uma grande exposição, com mais de uma centena de pinturas, desenhos e documentos, deverá apresentar a obra de Tarsila do Amaral (1886-1973) ao público norte-americano. Preparada por dois dos principais museus da contemporaneidade, o Instituto de Arte de Chicago e o Museu de Arte Moderna de Nova York, a mostra, prevista para ser inaugurada em outubro de 2017 em Chicago e seguir em fevereiro de 2018 para o MoMA, vai enfatizar o papel protagonista desempenhado pela artista no nascimento e desenvolvimento da arte moderna no Brasil, sinalizando o crescente esforço feito por parte da crítica dos países centrais para revisar a história oficial dos movimentos de vanguarda do século 20 e trazer para dentro do debate a produção desenvolvida fora do circuito hegemônico europeu e dos EUA.
“Nunca houve na América do Norte uma exposição inteiramente dedicada à obra de Tarsila. Mesmo que um ou dois trabalhos da artista tenham sido incluídos em mostras coletivas e tenham ocorrido exposições suas na Europa (notavelmente, na Espanha), este projeto é o primeiro aqui”, explicam os curadores Stephanie D’Alessandro, do Instituto de Arte de Chicago, e Luis Pérez-Oramas, do MoMA, que desde 2010 vêm unindo esforços para a concretização da individual da pintora. “O Instituto de Arte de Chicago e o Museu de Arte Moderna de Nova York têm algumas das mais significantes coleções de arte moderna do mundo, mas nós reconhecemos nesta era do globalismo que a história do modernismo é complexa”, afirmam Stephanie e Oramas em entrevista ao Estado. “Parece lógico destacar Tarsila nesse momento crucial em que os museus estão buscando mais vozes e perspectivas, e expandir o que conhecemos por ‘arte moderna’.”
A curadoria conjunta nasce de um interesse complementar entre as duas instituições. Stephanie D’Alessandro, que tem entre seus principais temas de pesquisa a obra de mestres como Magritte, Matisse e Picasso, conta que desde que começou a visitar o Brasil na década de 1990, para preparar a curadoria de uma exposição individual de Lasar Segall em Chicago, Nova York e Paris, e viu pinturas de Tarsila do Amaral, aguardava a oportunidade de mostrá-las nos EUA. Em 2010, estabeleceu-se a parceria com Luis Pérez-Oramas, quando ele foi a Chicago realizar uma palestra sobre Lygia Clark. De sua parte também havia já um interesse latente em investigar a obra da modernista brasileira. “Conversamos bastante no museu sobre o trabalho de Tarsila por muitos anos e achei um contexto muito favorável no MoMA, quando retornei de São Paulo em 2013”, conta o venezuelano, que retornava a Nova York após uma bem-sucedida incursão como curador da 30.ª Bienal de São Paulo, apresentada em 2012.
O projeto soma esforços às estratégias das duas instituições. Tanto o Instituto de Arte de Chicago como o MoMA – que chegou a estabelecer uma iniciativa interna chamada C-MAP (Contemporary and Modern Art Perspectives), dedicada à revisão da produção artística de regiões geralmente negligenciadas – têm buscado expandir suas coleções e exposições de arte moderna internacional para além das narrativas dominantes. Neste contexto, “Tarsila surgiu como um exemplo inquestionável”, diz Stephanie D’Alessandro.
“Queremos construir uma exposição que vai focar no trabalho referencial de Tarsila da década de 1920, como uma maneira de introduzir nosso público ao nascimento e crescimento da arte moderna no Brasil, a eventos importantes como a Semana de Arte Moderna de 1922 (mesmo que Tarsila não tenha participado), aos manifestos do modernismo brasileiro (Antropofagia e Pau Brasil) e a figuras extraordinárias como Anita Malfatti, Mário de Andrade e Oswald de Andrade”, explica Oramas. Também está sendo programado o lançamento de um catálogo, com textos dos curadores e uma série de informações sobre a artista.
Apresentar a obra de Tarsila internacionalmente e revê-la no contexto mais amplo das vanguardas internacionais é um desafio. Sua produção é um “caso muito único”, acreditam os curadores. Uma das artistas mais internacionais da cena brasileira, ela teve um diálogo importante com as vanguardas europeias e, ao mesmo tempo, promoveu uma série de investigações sobre a construção da forma e uso da cor, pautada por um claro interesse em investigar e construir um projeto de identidade nacional, tornando-se, assim, uma espécie de elo capaz de iluminar melhor as conexões entre a arte produzida na América Latina na primeira metade do século 20 e a arte moderna eurocêntrica. “Tarsila realmente incorpora uma forma de antropofagia simbólica e suas realizações estão baseadas na realocação e transformação das linguagens e de estilos modernos, mesmo que alguns dos elementos-chave de seu trabalho ainda sejam quase inclassificáveis pelos padrões das narrativas modernistas na Europa ocidental ou nos EUA”, explica Oramas. “Aparentemente, Tarsila assimilou Léger de maneira a conduzir sua produção a uma forma totalmente diferente e que ofereceu possibilidades inesperadas entre imagens e antropologia, paisagem e cultura popular”, acrescenta o curador do MoMA, responsável também pela realização de uma individual da brasileira Lygia Clark em 2014 no museu norte-americano.
O fato de a obra de Tarsila já ter obtido amplo reconhecimento comercial, sobretudo com a venda da tela O Abaporu para o colecionador argentino Eduardo Costantini por US$ 1,3 milhão em 1995, e de sua produção ter sido objeto de uma série de investigações detalhadas no Brasil e na Europa (como a mostra da pintora apresentada em 2009 na Fundação Juan March de Madri) contribuíram, mas não de forma decisiva, para a realização da exposição nos EUA.
“Os recordes de mercado geralmente conduzem a uma boa visibilidade para artistas e obras, mas nós preferimos focar nas razões históricas da arte que embasam a importância de Tarsila”, reconhecem os curadores. Entretanto, eles acrescentam que a individual da brasileira vai destacar, sobretudo, a produção mais significativa de sua trajetória, a dos anos 1920, considerando “sua invenção e habilidade como artista, seu protagonismo na produção de uma forma específica de modernismo no Brasil, sua antropofagia simbólica da modernidade do mainstream e de uma cultura vernacular no Brasil”.
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