Diálogo é uma palavra meio gasta. Um pouco pelo seu uso hipócrita no mundo político; outro tanto porque, martelada demais, em geral soa meio oca, vazia. Pois alguns dos mais talentosos músicos e criadores artísticos multimídia do planeta decidiram recuperá-la e fazer dela uma bandeira que pode - e deveria - conduzir a humanidade a pavimentar um futuro menos sangrento, mais harmonioso. A primeira iniciativa aconteceu em 1999, quando o maestro judeu argentino Daniel Barenboim e o intelectual palestino Edward Said constituíram a Orquestra Divã Oriental-Ocidental, formada por músicos árabes e judeus. Projeto magnífico, mas que puxava a sardinha só para o lado Ocidental: libaneses, egípcios, sauditas, jordanianos e palestinos, entre outros representantes de povos do Oriente Médio, empenhando-se em tocar a música clássica europeia. Consequentemente, deixavam de tocar as músicas deles. Ouça trechos dos CDs Mas agora é diferente. Nos primeiros meses de 2009, pelo menos três projetos notáveis buscam assimilar todas as músicas e deixá-las conviverem assim como povos, crenças e culturas devem fazer daqui para a frente, se não quiserem eliminar-se mutuamente pra valer. Credo - A Inocência de Deus é um sensacional DVD criado por uma equipe multimídia da Fabrica, centro de criação artística bancado pela fabricante italiana de camisetas Benetton e sediado em Milão. Envolve atores, músicos, orquestra sinfônica e conexões ao vivo entre o local da apresentação e grupos musicais de Jerusalém, Belfast e Istambul, além de depoimentos dessas etnias. Outro DVD também recentemente lançado no mercado internacional, In the Ocean, traz um excelente documentário de Frank Scheffer que esmiúça as relações da música norte-americana com a europeia nos últimos 30 anos e chega à conclusão de que o diálogo e a interpenetração harmoniosa de culturas, como diz John Cage num dos depoimentos, constituem a única saída para a música no século 21. Jérusalem, entretanto, mesmo sendo apenas um álbum duplo com dois CDs superáudio (SACD), consegue ultrapassá-los em clareza de propósitos e qualidade musical e de invenção. Depois de uma gloriosa carreira de mais de três décadas à frente de seu grupo Hesperion XX (agora XXI) na condição de um dos campeões na prática da música historicamente informada, o gambista catalão Jordi Savall, a caminho dos 68 anos, que completará em 1º de agosto próximo, parece ter chegado ao clímax de sua trajetória. O projeto nasceu como encomenda da Cité de la Musique parisiense em 2007. O pedido: construir um espetáculo musical falando das três grandes religiões monoteístas. Numa das entrevistas a publicações internacionais, Savall explica que "Jerusalém é uma cidade que trazemos dentro de nós há muito tempo. Há mais de dez anos, ela esteve na origem do nascimento de Alia Vox (o selo fonográfico próprio de Savall): a atmosfera extraordinária, a emoção da cidade, a mistura do antigo, do moderno, de conflitos, de paz - tudo isso gerou o desejo de realizar uma aventura maluca como fundar nossa própria gravadora. Sempre tivemos Jerusalém em nosso espírito." Neste álbum duplo tudo é diferenciado. A partir das aproximadamente de 50 páginas, com vários artigos a cargo de historiadores, musicólogos e pesquisadores sobre os 3 mil anos de história da cidade, sobretudo das músicas que expressaram as três condições que a tornam única. Afinal, Jerusalém já foi chamada de umbigo do mundo porque é o berço das três grandes religiões monoteístas. Judaísmo, cristianismo e islamismo têm ali suas origens. Pois estes textos são reproduzidos em oito línguas: francês, espanhol, catalão, inglês, alemão, italiano, árabe e hebraico. Com belíssimas ilustrações dos músicos, instrumentos e de documentos de época, o que seria o folheto do álbum duplo transformou-se num luxuoso livro capa dura de cerca de 434 páginas. São dois os motivos que levaram Savall a adotar este formato luxuoso que, no entanto, é vendido pela internet (www.prestoclassical.co.uk) pelo preço normal de dois CDs, ou seja, US$ 38,99: em primeiro lugar, reforçar, segundo suas próprias palavras, que "a música não é apenas algo que se baixa na internet e se escuta apertando um botão. A música ainda faz parte de um ritual sagrado do homem." Nos últimos três anos, Savall criou três projetos semelhantes a este, dedicados aos 400 anos de Dom Quixote; às miscigenações musicais entre Oriente e Ocidente; e às músicas do Novo Mundo. Mas agora o desafio era ainda mais ambicioso. Conseguiu sintetizar, em dois CDs, 3 mil anos de música em torno de Jerusalém. Ao todo, Savall reuniu 40 músicos, entre espanhóis, franceses, ingleses, belgas e gregos já integrantes de seus grupos Hesperion XXI e Capella Reial de Catalunya, além de cantores e instrumentistas judeus e palestinos de Israel, Iraque, Turquia, Armênia, Síria e Marrocos. Meta: mostrar como as três grandes religiões monoteístas do Mediterrâneo invocaram e desejaram Jerusalém, por meio da música. As duas horas e meia de música apaixonante e extremamente diversificada - fundamentalmente baseada nos textos bíblicos - articulam-se em um curto prólogo e seis capítulos e um longo postlúdio. A abertura, de arrepiar, relembra, através do shofar e do anafir, as lendárias trombetas de Jericó, que na Bíblia derrubaram as muralhas com suas tonitruantes sonoridades. O primeiro capítulo trata da paz celeste e o apocalipse do juízo final (três cantos de cada uma das religiões: um oráculo sibilino do século 3º a.C. na incrível voz de Montserrat Figueras, mulher de Savall; um canto árabe sufi com outro cantor magnífico, Muwafak Shahin Khalil; e um canto do Evangelho cujo manuscrito está preservado no convento de Las Huelgas. Como é impossível ir ao detalhe, limito-me a indicar que o segundo capítulo mostra a música de Jerusalém como cidade judaica, desde sua fundação, em torno do ano 1000 a. C. até a destruição do tempo no ano 70 da era cristã (três belíssimos recitativos de Lior Elmalich entremeados de música de salmos de Davi: 121, prece a Jerusalém; 122, a paz de Jerusalém; e 137, canto do exílio). O terceiro capítulo mostra Jerusalém como cidade cristã, da chegada da rainha Helena, mãe de Constantino, em 324, até a conquista da cidade por Saladino no fim do século 12 e a derrota das Cruzadas em 1244 (além da convocação à guerra pelo papa Urbano II em 1095, Savall inclui três canções das Cruzadas, como a comovente Pax in Nomine Domini, lamentando a derrota em Jerusalém). No quarto capítulo Jerusalém torna-se a cidade de peregrinação, entre 383 e 1326, com três incríveis performances do Savall compositor, improvisando sobre textos do viajante árabe Ibn Battuta, do século 14, com Begônia Olavide; o grande Lior Elmalich volta com Sionide: Bela Cidade, Joia do Universo, do rabino Judah Halévy, século 12; e O Ffondo do Mar Tan Chao, uma das Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o Sábio, do século 13, num dueto de Lluis Vilamajo com Montserrat Figueras. Entre 1244 e 1516, Jerusalém árabe é o tema do quinto capítulo. Após um belo prelúdio no alaúde, o conjunto sufi Al-Darwish interpreta A Ascensão de Maomé aos Céus. Nos quatro séculos seguintes, a partir de 1517, a cidade torna-se otomana: sucedem-se o manuscrito otomano do século 17, a narrativa do sonho de Soliman o Magnífico e uma surpreendente marcha de guerra que descreve a conquista de 1517. O sexto capítulo é o mais impactante. Mostra Jerusalém como terra de asilo e do exílio, entre os séculos 15 e 20. Começa com Palestina Hermosa y Santa, da tradição sefaradi de Sarajevo, em que a voz de timbre límpido de Montserrat contracena com instrumentos exóticos como a kemancha e a ceterina; dois tocantes cantos de lamentação, um palestino, outro armênio, antecedem uma impressionante gravação de 1950 de Shlomo Katz. Judeu romeno preso em Auschwitz em 1941, pediu permissão para cantar El Male Rahamim, ou canto aos mortos de Auschwitz, antes de ser executado na câmara de gás. Relatos dão conta de que o oficial alemão comoveu-se a ponto de lhe salvar a vida e facilitar a fuga do campo. O postlúdio deixa o passado hediondo para trás e olha para o futuro com esperança. Savall concebeu um módulo intitulado A Paz Terrestre: Uma Esperança e Um Dever. Sucedem-se votos de paz em árabe, hebraico, armênio e latim; em seguida, uma curta melodia de tradição oral do Mediterrâneo é ouvida dez vezes em todas as línguas reunidas para esta empreitada, ora como voz solista, ora em diversas combinações instrumentais, concluindo com um tutti. Mas a faixa derradeira faz retornarem as trombetas de Jericó. Só que agora elas nos convidam a derrubar as barreiras espirituais que nos impedem de viver em harmonia. "Na música", Savall já repetiu inúmeras vezes em entrevistas, "é impossível mentir, não existem equívocos. Fazer música com alguém implica simpatia, respeito, escuta, concordar com o diapasão do outro. Estas são condições necessárias para o diálogo humano." De fato, como o sociólogo, ou melhor, pensador norte-americano Richard Sennett, violoncelista de talento na juventude, colocou com enorme acerto em seu livro Respeito (Record, 2004), devemos "tentar tornar a sociedade mais semelhante ao concerto de música: isto é, explorando as formas de se apresentar como iguais, e demonstrar respeito mútuo (...) (isso é difícil mesmo para os músicos) muitos músicos têm o impulso cooperativo, mas poucos conseguem traduzi-lo em som. Isto é ainda mais verdadeiro na vida social: existe um enorme abismo entre esperar agir bem em relação aos outros e agir bem de fato". Com Jérusalem, Jordi Savall e seus 40 músicos e cantores de várias etnias e nacionalistas agem bem de fato. Um detalhe interessante: Jordi assina o texto de abertura do livro-CD intitulado O Poder da Música. E, embaixo de sua assinatura, coloca: "São Paulo, 16 de setembro de 2008." Pois ele o escreveu no dia do primeiro de dois concertos que fez com Montserrat Figueras e seu grupo Hesperion XXI na temporada da Sociedade de Cultura Artística. Naquela noite, pouco depois do incêndio de agosto que consumiu o teatro da Rua Nestor Pestana, eles se apresentaram no Teatro Abril.
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