Uma escultura mortal de Michelangelo volta à vida

Essa Pietà foi um dos trabalhos mais angustiantes de Michelangelo. Ao esculpi-la, ele meditou sobre sua própria morte, mesmo quando se preocupava com o fato do mármore - um material que ele dominava - não ser compatível com seu cinzel

PUBLICIDADE

Por Elisabetta Povoledo

FLORENÇA, ITÁLIA - Michelangelo era um homem idoso quando começou a trabalhar em uma escultura que vislumbrava para o altar de seu próprio túmulo: Era uma Pietà de mármore, retratando Jesus apoiado pela Virgem Maria, Santa Maria Madalena e o fariseu Nicodemos, e cujo rosto é um autorretrato sutilmente gravado do artista envelhecido.

A Pietà restaurada de Michelangelo no Museu Opera del Duomo em Florença, Itália. Foto: Opera di Santa Maria del Fiore/ Claudio Giovannini via The New York Times

PUBLICIDADE

Michelangelo trabalhou no projeto entre 1547 e 1555, na casa dos 70 anos, e foi um projeto difícil desde o início. Seu amigo e biógrafo Giorgio Vasari escreveu que o bloco de mármore tinha falhas e muitas impurezas e que “o cinzel costumava produzir faíscas”. Michelangelo ficou frustrado, abandonando eventualmente o trabalho, e Vasari escreveu que Michelangelo tentou destruí-lo.

Mas a escultura sobreviveu, e na semana passada a Pietà foi celebrada publicamente aqui, após sua primeira grande restauração em quase 470 anos.

Monsenhor Timothy Verdon, diretor do museu Opera del Duomo, que tem sido o lar da estátua pelos últimos 40 anos, disse, “Esse é o trabalho mais pessoal de Michelangelo, não apenas porque inclui seu autorretrato e estava destinado ao seu túmulo, mas porque expressa a relação conturbada que ele teve com o mármore.”

Uma análise do mármore durante a restauração revelou que ele não vinha de Carrara, a principal pedreira de Michelangelo na Toscana, como se supunha, mas de pedreiras em Seravezza, a cerca de 16 km de distância.

Publicidade

Os restauradores também viram, em primeira mão, por que Michelangelo pode ter deixado o trabalho inacabado. O mármore é imperfeito, não há uma cor uniforme no bloco e ele contém vestígios de pirita, um mineral de sulfeto que reage com o metal, o que explicaria as faíscas produzidas quando Michelangelo martelava. O bloco de mármore também revelou fraturas e rachaduras mínimas que não deveriam estar visíveis quando Michelangelo começou a esculpir, mas que eram facilmente estilhaçadas quando atingidas. Uma fratura como essa deve ter surpreendido Michelangelo enquanto ele estava esculpindo os braços esquerdos de Cristo e da Virgem Maria; uma falha tão intransponível que Michelangelo deve ter sido forçado a jogar o cinzel, por assim dizer.

“Ele encontrou a fratura; deve ter tentado trabalhar ao redor dela, mas nesse caso não podia fazer muita coisa,” disse Paola Rosa, a restauradora chefe do projeto.

Paola Rosa e Emanuela Peiretti restauram a Pietà de Michelangelo no Museu Opera del Duomo em Florença, Itália. Foto: Opera di Santa Maria del Fiore/ Claudio Giovannini via The New York Times

Depois que decidiu abandoná-la, Michelangelo presenteou seu servo Antonio da Casteldurante com a escultura, ele a confiou a Tiberio Calcagni, um dos pupilos e colaborador eventual de Michelangelo, que retrabalhou a estátua até que ela atingisse o estado semi finalizado em que está.

Por volta de 1560, o trabalho foi vendido ao banqueiro Francesco Bandini e ficou conhecido como Bandini Pietà. Ela encontrou seu caminho de Roma para Florença, onde foi instalada atrás do altar principal da catedral da cidade, embaixo de grandes candelabros cujas gotas de cera deixaram marcas.

Mas foi um molde de gesso tirado da estátua em 1882 que a alterou de forma significativa. A estátua não foi limpa adequadamente depois que o gesso foi retirado, deixando-a branca e ressecada. Os guardiões da catedral na época decidiram aplicar uma camada de cera cor âmbar, que foi reaplicada por décadas especialmente nas áreas mais expostas. A cera envelheceu e o estuque e outros materiais - usados para juntar algumas peças que haviam quebrado - oxidaram, e a escultura ficou manchada.

Publicidade

“A gente brincava que ela parecia um dálmata,” Rosa disse.

A restauração atual começou em 2019, e foi realizada em um laboratório aberto no museu da Opera del Duomo, a instituição proprietária e que, por 700 anos, supervisionou a manutenção da catedral de Florença e outros prédios. Ali, os visitantes podiam assistir a Rosa e sua equipe trabalharem na escultura (quando o museu não estava fechado por causa do coronavírus).

A remoção das camadas de cera e sujeira trouxe de volta “a ideia original de Michelangelo sobre a escultura”, Rosa disse em uma entrevista na semana passada, acrescentando que foi um "trabalho meticuloso".

Rosa restaurou várias esculturas de Michelangelo em Florença, incluindo o famoso David na Galeria Accademia, bem como o chamado “Pitti Tondo” e um busto de Brutus, ambos no museu Bargello da cidade.

“Na primeira vez em que coloquei as mãos em Michelangelo tinha 40 anos, agora tenho 62,” disse Rosa, com a voz emocionada. “É tão emocionante, tão particular, e ainda não sinto que o conheço,” ela disse. “Com apenas alguns toques de seu bisturi, ele é capaz de fazer coisas incríveis,” ela disse.

Publicidade

A remoção das camadas de cera e sujeira trouxe de volta 'a ideia original de Michelangelo sobre a escultura'. Foto: Opera di Santa Maria del Fiore/ Claudio Giovannini via The New York Times

O museu Opera del Duomo abriga uma das melhores coleções de esculturas do fim da Idade Média e do Renascimento da Itália, e cerca de 600 estátuas foram restauradas quando o museu foi fechado e reformado, reabrindo em 2015.

“Basicamente contratamos todos os restauradores renomados do centro da Itália por um período de dois anos para fazer esse 'ataque relâmpago' na sujeira de nossas estátuas,” disse Verdon, o diretor do museu.”

A Pietà foi a única grande obra não restaurada na época, porque precisava de “experiência e tempo”, e daria ao museu uma oportunidade nova para expor sua coleção depois, Verdon disse em uma entrevista coletiva na sexta-feira.

Antonio Natali, um membro do conselho do Opera del Duomo, disse em uma entrevista que, enquanto outra Pietà de Michelangelo era mais famosa - a criada para a Basílica de São Pedro em Roma quando o artista tinha 24 anos - a obra recém restaurada era “a mais tocante de todas”.

Essa Pietà também foi um dos trabalhos mais angustiantes de Michelangelo. Ao esculpi-la, ele meditou sobre sua própria morte, mesmo quando se preocupava com o fato do mármore - um material que ele dominava - não ser compatível com seu cinzel.

Publicidade

Em sua biografia de Michelangelo, Vasari escreveu que ele visitou o artista durante uma noite, já tarde, e o encontrou trabalhando na escultura, “tentando fazer mudanças” em uma das pernas da figura de Cristo. Quando ele viu Vasari assistindo, “Michelangelo deixou a lanterna cair de sua mão, deixando-os no escuro”, para não deixar que Vasari a visse.

Michelangelo então disse a Vasari: “Estou tão velho que a morte sempre me puxa pela capa para que eu vá com ela, e um dia, assim como essa lanterna, meu corpo cairá, e a luz da vida se extinguirá”

TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.