Um lado menos monumental da pintura moderna de Alfredo Volpi (1896-1988) está em exposição, a partir de hoje, 20, na Sala Paulo Figueiredo do Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo. Mas, a despeito das modestas dimensões das obras exibidas na retrospectiva Volpi – Pequenos Formatos, que tem como curadores a crítica Aracy Amaral e o educador Paulo Portella Filho, as 74 peças selecionadas são igualmente grandiosas – e raras, todas pertencentes à coleção do engenheiro Ladi Biezus, gaúcho de Erechim formado pela Politécnica da USP.
Exemplo dessa raridade é uma têmpera peculiar, do começo dos anos 1970, pintada apenas com terras naturais provenientes de uma escavação das sapatas de fundação da Estação de Tratamento de Esgotos do ABC. Biezus, então já íntimo do pintor, trouxe de lá uma série de pigmentos terra – cinco ao todo – retirados da obra e preparados por sua irmã bioquímica Rosa.
A pintura acabou assumindo, para Biezus, um duplo significado simbólico, associada por ele tanto à dimensão concreta da terra – e de sua atividade como engenheiro – como à sublime alquimia pictórica de Volpi, nosso maior pintor moderno, que, simultaneamente, ganha uma exposição em Londres, na galeria Cecilia Brunson Projects (leia abaixo), porta de entrada para uma futura retrospectiva na Tate Modern.
Concebido pelo arquiteto Vasco Caldeira, o espaço expográfico da sala Paulo Figueiredo foi transformado para se adaptar ao delicado acervo formado por pequenos estudos em têmpera sobre papel, óleos sobre madeira e cartão, além de pinturas sobre azulejo guardados desde que Biezus conheceu Volpi numa exposição em homenagem a Tarsila do Amaral, no início da década de 1970, tornando-se seu amigo e um dos maiores colecionadores de sua obra, ao lado de Theon Spanudis, Marco Antonio Mastrobuono, Domingos Giobbi – os três já falecidos – e Orandi Momesso.
Uma característica da coleção Biezus é agrupar obras que cobrem todos os períodos de atividade de Volpi, cujo primeiro quadro foi pintado em 1914. Há na mostra do MAM desde paisagens dos anos 1920 até as “bandeirinhas” dos anos 1970, passando por casarios e marinhas dos anos 1940, retratos e imagens de santos dos anos 1950, raríssimas têmperas do breve período concreto e fachadas dos anos 1960.
Biezus concluiu que os estudos feitos em pequeno formato, embora não tivessem a “solenidade” das telas em dimensões maiores, eram mais intimistas e espontâneos, revelando a inocência pagã de Volpi, um ateu que, segundo ele, tinha comportamento cristão e, a exemplo de Saulo, converteu-se à luz – com a simples diferença de que a sua estrada de Damasco foi pavimentada pela pintura, os mestres pré-renascentistas e os modernos Matisse e Cézanne.
A curadora Aracy Amaral destaca, a respeito, a teoria desenvolvida por Biezus sobre a “metanoia volpiana” – não simplesmente uma abjuração de seu passado figurativo, mas uma conversão às “infinitas possibilidades da cor”. Nos anos 1970, Volpi, segundo Biezus, saiu da “escuridão dos infernos” para “ressuscitar na luz” com uma paleta cromática que explode numa mudança radical de rumo.
O curador Paulo Portella Filho, até para evidenciar essa evolução, optou por uma montagem cronológica em que primeiro são apresentadas as pinturas de juventude do artista (cenas urbanas no Cambuci, nos anos 1920 e 1930), depois as paisagens de Mogi das Cruzes e as marinhas saturninas de Itanhaém (anos 1940), chegando finalmente à essência formal e geométrica das fachadas dos anos 1960 e às bandeirinhas da década seguinte.
O lado austero de um operário da pintura deslumbrado com os florentinos e os metafísicos italianos convive na mostra com o sofisticado pintor que adota uma paleta mais viva e ousada, especialmente dos 1930 em diante, quando descobre a pintura popular (e o erudito Ernesto de Fiori). Foi um desafio para os curadores da mostra optar por essa orientação cronológica, considerando que a evolução de Volpi está longe de ser linear e, muito menos, submissa a teorias – Aracy Amaral conta que, ao organizar sua retrospectiva no MAM do Rio, em 1972, ele se recusou a ler o texto do catálogo por considerá-lo “muito longo”.
Volpi, portanto, realizou a síntese entre figuração e abstração sem recorrer a tratados acadêmicos, usando apenas seu dom, sua inteligência visual e a capacidade de assimilar as lições dos mestres. Não foi um naïf moderno, como Henri Rousseau (1844-1910). Foi um formalista lírico que veio ao mundo para ordenar sua bagunça e provar que, na tela, o que vale é a boa pintura, não a teoria.
Mostra inglesa. Aberta no dia 11, a primeira individual de Alfredo Volpi em Londres, na galeria Cecilia Brunson Projects, reúne 32 pinturas que sintetizam sua trajetória, desde as telas figurativas dos anos 1940 aos trabalhos dos anos 1980, último período de sua extensa produção (mais de 2.600 obras). Uma iniciativa da galeria inglesa em associação com a galeria paulistana Almeida e Dale, a exposição Alfredo Volpi: At the Crossroads of Brazilian Modern Art tem curadoria do crítico anglo-brasileiro Michael Asbury, também autor do texto do catálogo que acompanha a mostra, em cartaz até 29 de julho.
Asbury, ao especular a razão de Herbert Read ter se interessado e defendido a premiação da Volpi na 2ª. Bienal de São Paulo, em 1953, dividindo o prêmio com Di Cavalcanti, imagina que o crítico inglês o tenha associado ao pintor naïf Alfred Wallis (1855-1942), descoberto por Ben Nicholson em 1928, em Cornish, uma aldeia de pescadores. Pode ser, embora o próprio Asbury considere reducionista a comparação de Wallis com Volpi.
Parece evidente que Volpi nunca foi naïf. Um texto do crítico Mário Pedrosa, publicado em 1957 e reproduzido no catálogo, afirma, de modo categórico, que Volpi não era “ingênuo” nem “primitivo”, mas um homem simples com “humildade artesanal” e “profunda sabedoria pictórica”. Pedrosa lembra como Volpi corria atrás de informações que não teve na escola, ao viajar até Pádua para ver as pinturas de Giotto na Cappella degli Scrovegni, ou até a Toscana para ver os afrescos de Piero della Francesca em Arezzo.
O curador Asbury cita dois críticos atuantes no Brasil, Rodrigo Naves e Lorenzo Mammì, para mostrar que Volpi também teve contato com eventos históricos do modernismo brasileiro – ele esteve na polêmica mostra expressionista de Anita Malfatti, em 1917, além de ter sido influenciado por Goeldi.
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