Czesława Kwoka tinha 14 anos quando recebeu uma injeção letal no coração, em março de 1943, no campo de concentração de Auschwitz. Um ano antes, Gersz Zyskin foi exterminado no mesmo local, menos de dois meses após sua captura. Entre 1942 e 1945, Józefa Głazowska foi usada em experimentos nazistas que a contaminaram com malária e tifo.
Essas são algumas das histórias resgatadas pelo projeto Faces of Auschwitz (Rostos de Auschwitz), desenvolvido a partir de uma parceria entre o Auschwitz-Birkenau Museum e a brasileira especialista em colorização de fotos Marina Amaral. Criado há um ano como acervo digital, o projeto se tornou também um documentário, atualmente em fase de pós-produção e ainda sem data de lançamento – mas com trailer previsto para este mês.
O projeto nasceu do acaso, conta Marina. Em 2014, a artista brasileira encontrou e coloriu a foto da jovem Czesława Kwoka, que abre este texto. “Era um registro feito logo após a chegada dela a Auschwitz e bastante perturbador”, diz Marina. “Ele retrata uma criança em um momento de extrema vulnerabilidade, com o lábio sangrando, porque havia sido espancada minutos antes, e ainda assim sustentando uma expressão de muita coragem no rosto.”
Um ano após o trabalho, a foto de Czesława chegou ao conhecimento do museu de Auschwitz, que publicou o documento nas redes sociais. A história viralizou. “Quando percebi a dimensão do que estava acontecendo e a intensidade da reação das pessoas do mundo inteiro, compreendi que podia fazer algo maior e significativo”, conta Marina. “Decidi que queria restaurar mais fotos e contar mais histórias.”
Marina tem à sua disposição 39 mil fotos, mantidas pelo Auschwitz-Birkenau Museum. Curiosamente, a maioria dos registros foi feita pelos próprios prisioneiros do campo de concentração, a mando dos nazistas. “O propósito era documentar os encarcerados, mas os nazistas logo entenderam que era um objetivo inviável frente à escala do crime que estavam cometendo”, explica Marina. “A partir daí, só algumas pessoas foram escolhidas para serem fotografadas.”
Fotógrafo antes da guerra, o polonês Wilhelm Brasse (1917-2012) foi um dos principais prisioneiros-fotógrafos do campo de concentração. Quando o campo de Auschwitz foi evacuado, no fim da Segunda Guerra, Brasse e seus companheiros receberam ordens de queimar todas as fotos e negativos, mas conseguiram salvar os registros que, hoje, são coloridos para o projeto.
Para Marina, colorir fotos é uma forma de quebrar uma barreira temporal – e emocional – entre quem as observa e quem foi retratado. “Quando entendemos que aquele mundo era tão colorido e real como o mundo no qual vivemos hoje, conseguimos nos conectar muito mais real e profundamente com as pessoas e os eventos históricos ali retratados”, afirma.
Outros trabalhos. O trabalho de Marina Amaral vai além do período que compreendeu a Segunda Guerra. As ruas de Paris antes da Revolução Francesa, o Titanic sendo preparado para zarpar e aviadora americana Amelia Earhart na cabine de um avião são alguns dos registros históricos que ela escolheu para colorizar. O processo é, muitas vezes, demorado. Tudo é feito digitalmente, com ajuda do Photoshop. Nenhum algoritmo ou filtro é aplicado: os detalhes selecionados são pintados à mão, como em um grande livro de colorir.
A parte mais importante do trabalho é a pesquisa. “Fotografias são documentos e devem ser respeitadas como tal”, afirma Marina. Com historiadores e especialistas, a colorizadora identifica o maior número possível de detalhes de cada foto para, a partir daí, mergulhar em documentos da época, livros e jornais que possam indicar cores e texturas dos objetos retratados – como medalhas, uniformes e bandeiras. Quando não há informação disponível, Marina toma decisões artísticas. “É inevitável”, afirma.
Marina diz que seu trabalho mais difícil foi a produção do livro The Colour of Time: A New History of the World, 1850-1960, em parceria com o jornalista britânico Dan Jones. Publicado em agosto de 2018, mas ainda sem versão em português, obra chegou a ficar entre as cinco mais vendidas do Reino Unido. “Foram dois anos selecionando fotos, colorizando, pesquisando e escrevendo o conteúdo”, diz Marina. O objetivo dos autores era ir além da história dos Estados Unidos e da Europa. “Queríamos abraçar a história de todos os lugares. Foi muito difícil encontrar um equilíbrio”, explica. Nas fotografias, guerras e revoluções dividem espaço com eventos desconhecidos do grande público.
Brasil. Apesar da nacionalidade, Marina quase não possui conteúdo brasileiro no portfólio. “As instituições brasileiras não têm hábito de dispor fotos digitalmente e, quando o fazem, não liberam muita coisa para o domínio público”, explica. Apesar da dificuldade, Marina tem projetos para colorir registros da participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial e fotos da Família Imperial. “Acredito que isso ofereceria uma perspectiva única sobre momentos da nossa história”, afirma.
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