Que tipo de inveja nos despertam certos autores? Não me refiro às figuras que admiramos por suas virtudes e proezas eminentemente literárias, escritores como Kafka ou Dostoievski, mas à afortunada espécie a que pertenceram o americano Arthur Miller, o inglês Robert Graves, o alemão Erich Maria Remarque, o franco-lituano Romain Gary e o mexicano Carlos Fuentes.
Ou seja, àqueles que tiveram caso ou casaram com algumas das mulheres que mais cobiçávamos e só pudemos adorar à distância. Miller casou com Marilyn Monroe; Graves teve um longo namoro com Ava Gardner; Remarque viveu anos com Paulette Goddard. Gary foi o segundo marido de Jean Seberg, que, durante as filmagens de Macho Callahan teve um caso com Fuentes, affair de resto retratado por Fuentes no romance Diana (ou a Caçadora Solitária). Nenhuma dessas relações teve um desfecho tão trágico quanto o de Gary e Seberg. Pirada por excesso de álcool, drogas e procedimentos psiquiátricos pesados decorrentes de uma das mais sórdidas campanhas difamatórias perpetradas pelo FBI de J. Edgar Hoover, Seberg suicidou-se com uma overdose de barbitúricos, em 1979. Dali a 15 meses, também em Paris, Gary, havia tempo separado da atriz, enfiou uma pistola na boca e puxou o gatilho. O escritor lançara pouco antes o que seria seu último livro: As Pipas, só agora entre nós traduzido (por Julia da Rosa Simões) e editado pela Todavia. Um excêntrico ex-carteiro da Normandia, Ambrose Fleury, que transformou a “gentil arte” de fazer pipas numa atração turística do vilarejo de Cléry, é um dos três heróis masculinos do romance. Os outros dois — Ludo, o sobrinho adolescente de Ambroise, narrador da história, e Marcellin Duprat, dono de um albergue e restaurante três estrelas — dividem o elenco com uma garota polonesa coquete, de “cabelos loiro-bebê cacheados”, chamada Lila, de férias em Cléry com sua aristocrática família, e Julie Espinoza, cafetina cujo bordel parisiense será o QG da Resistência quando os nazistas ocuparem a França, cinco anos depois. Mais do que meros brinquedos alados, as pipas de Ambroise são artefatos artísticos cujos desenhos elevam às alturas glórias intelectuais e políticas da França — de Rabelais a Rousseau, de Léon Blum a De Gaulle — e reafirmam, como a alta qualidade da vieille cuisine de Duprat, a “superioridade” francesa sobre os invasores teutônicos. A cidade de Cléry existe de verdade, assim como o albergue Clos Joli, mas desconheço se lá de fato existe até hoje um museu dedicado a pipas, conforme informa o narrador na frase de abertura. Exímio narrador, Gary articula sua amorosa crônica provincial sobre fraquezas e grandezas humanas com uma dosagem precisa de ironia e aquela bonomia que tanta distinção deu ao cinema de Jean Renoir. Seus capítulos iniciais me evocaram uma porção de coisas:as comédias rurais francesas dos anos 1930-40, a ficção provençal de Jean Giono, os primeiros filmes de Jacques Tati protagonizados por carteiros, uma canção de Pierre Barouh e Francis Lai (La Bicyclette) cuja musa inspiradora, Paulette, é a “fille du facteur” (filha do carteiro) do lugarejo, o triângulo amoroso de Jules e Jim (também envolvendo um francês e um alemão em disputa pela mesma mulher, num contexto de guerra). Por sua memória prodigiosa, Ludo tanto me fez lembrar do memorioso Funes de Borges como do linotipista de Anselmo Duarte em Absolutamente Certo!, que sabia de cor a lista telefônica da cidade de São Paulo. Sua acidentada paixão por Lila me transportou ao clima romântico de O Bosque das Ilusões Perdidas, de Alain-Fournier, notadamente pelo corte de cabelo de Lila assemelhar-se ao de Yvonne de Galaise, que, por sua vez, confunde-se com o de Jean Seberg e o de Joana D’Arc, o primeiro papel da atriz na tela. Quão bizarra pode ser a nossa cabeça! E não mais direi para evitar spoilers. Leiam o romance, que até as feministas é capaz de deleitar, pelo que dizem, falam e fazem Lila e a cafetina Julie. Lila implora a Deus por um mundo cada vez mais feminino e que tudo—as ideias, os países e chefes de Estado—consoante a sugestão de Jesus, feminilize-se. Alguns episódios são autobiográficos. Gary se metia bastante em sua ficção, com os mesmos excessos de imaginação com que coloriu sua vida. No elogioso perfil que publicou há quatro anos na revista The New Yorker, Adam Gopnik qualificou-o de “grande mentiroso”, com farta documentação comprobatória. Nascido Roman Kacew e judeu pobre do Leste Europeu, Gary recriou-se com tufos de nobreza decadente e incorporou um misterioso passado na Rússia czarista. Inventou que sua mãe, Nina, era uma atriz menos interessada na carreira do que em transformá-lo num prodígio do mundo ocidental. Também é lenda que ele fosse filho ilegítimo do célebre ator russo Ivan Mosjoukine, aquele mesmo do “efeito Kuleshov”. Francófona ao delírio, Nina levou seu prodígio para Nice—e o resto é história. E lenda. Roman, que na França virou Romain, além de Gary, fez um percurso literário invejável. Escreveu bons livros e best sellers, ganhou dois prêmios Goncourt, um dos quais com o pseudônimo de Émile Ajar, fez roteiros para filmes e dirigiu poucos outros, foi herói de guerra, diplomata—e conquistou Jean Seberg, quando cônsul geral da França em Los Angeles, em 1959. Ao estourar os miolos, em seu apartamento na rue du Bac, em 2 de dezembro de 1980, o autor de As Pipas, de 66 anos, deixou a seguinte nota: “Dia D. Nada a ver com Jean Seberg. Já disse tudo o que tinha a dizer.”
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