Autora sul-coreana retrata a luta de uma mãe para proteger sua filha

Kim Hye-Jin retrata a precarização do trabalho, conflito de classes e o preconceito em ‘Sobre Minha Filha’

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Foto do author Matheus Lopes Quirino

“Como impedir as inúmeras tragédias que rodeiam minha filha e que esperam apenas o momento para dar o bote?”, pergunta-se a protagonista de Sobre Minha Filha, uma senhora viúva que teve seus sonhos caídos por terra. O motivo: A filha, que criou para ser um espelho de sua geração (dona de casa, bem-casada, com filhos) é lésbica. Ao longo da história, ruminações sobre a natureza da filha rondam de forma negativa seu imaginário. Não bastasse o conservadorismo intrincado nesta imagem (que ela conhecia a distância), a menina volta para a casa da família com a namorada, o que gera um choque geracional balizado pela homofobia.

A premissa do livro é esse retorno à casa da mãe, uma espécie de cortiço na periferia sul-coreana, onde a vizinhança é o barômetro dos bons costumes e a fofoca corre solta entre os moradores mais antigos, todos da geração da mãe de Green. Naquela casa, a sombra do falecido marido é o sustentáculo das tradições rígidas familiares e, todos os dias, a senhora se dirige ao trabalho amparada por esses valores morais intransigentes.

Kim Hye-Jin, autora sul-coreana que tem romance publicado no Brasil pela primeira vez  Foto: Editora Fósforo

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No romance, a personagem da escritora sul-coreana Kim Hye-Jin é uma mãe que vive a rotina árdua de uma casa de repouso aos pandarecos, onde se depara com “farelos de bolinho na boca, pernas esqueléticas dos doentes, diarreia, brotoejas, fraldas, cheiro de urina, unhas mal cortadas etc.”. A situação do lugar piora com o tempo, à medida que o quadro de sua paciente, a idosa Zen, deteriora-se. Mas Zen não é uma pessoa qualquer, teve seus dias de fama, escreveu livros, viajou o mundo, fundou o Centro de Apoio dos Direitos Humanos de Imigrantes; paga uma nota para receber os cuidados previstos para sua idade e doença, o que não acontece devido a burocracias e corrupção do diretor do lugar.

Entre o trabalho e a casa, vice-versa, a protagonista precisa sair de suas projeções sobre o que considera normalidade. De um lado, a vida se deteriora com a situação da paciente Zen, com quem trava amizade e admiração, pela resistência da anciã que, devido a imprudência de outros cuidadores, já está com uma escara feia. Em casa, a situação da filha, professora temporária, que tem pouco dinheiro para seguir a vida ao lado de outra mulher.

Das burocracias que cercam a personagem, essa mãe, seja no meio de uma multidão que clama por direitos, ou num quartinho escuro e insalubre da clínica que trabalha, é obrigada a rever seus conceitos para enxergar o que é realmente danoso para sua existência

“Minha filha nasceu do meu ser. A partir do momento em que apareceu na minha vida, ela desfrutou de cuidados e proteção incondicionais. Mas agora age como se não tivesse nada a ver comigo.”. Para piorar a situação, Green está envolvida em uma onda de protestos contra a demissão injusta de um docente da Universidade em que trabalha como horista, justamente pelo colega ser homossexual.

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Das burocracias que cercam a personagem, essa mãe, seja no meio de uma multidão que clama por direitos, ou num quartinho escuro e insalubre da clínica que trabalha, é obrigada a rever seus conceitos para enxergar o que é realmente danoso para sua existência. Afinal, pondera a personagem: “Fico triste que minha filha seja discriminada. É uma menina estudada e muito culta, mas tenho medo de que ela seja demitida, que não tenha dinheiro para se sustentar, que acabe envelhecendo em meio à pobreza e tenha de recorrer a trabalhos físicos mal remunerados, como eu. Isso não tem nada a ver com o fato de gostar de mulher”. Em entrevista ao Estadão, a autora respondeu a perguntas sobre seu novo livro.

'Card Players', obra do pintor novaiorquino Milton Avery (1885-1965), que retratou o cotidiano de mulheres  Foto: The Samuel Dorsky Museum

Na literatura queer, é usual ver histórias contadas pelos filhos, seja para falar de suas experiências, como a saída do armário, o que gera um debate sobre a homofobia dentro de casa. Como foi criar a história do ponto de vista da mãe?

É verdade que eu me sinto muito mais próxima da geração da filha do que a da mãe, mas não queria que a filha fosse a protagonista desta obra. Porque eu queria tentar entender, nem que fosse um pouco, a geração e a posição da mãe. Além disso, apesar de queer ser um tema do romance, eu me concentrei principalmente na questão da compreensão. Porque achei que a questão da compreensão, mesmo numa relação de extrema proximidade como a de uma mãe e filha, eram muito difíceis. Eu procurei ilustrar o estorvo que uma pessoa pode enfrentar nesse processo, e também o esforço para se chegar a conseguir compreender alguém.

A relação da protagonista com a idosa Zen mostra como o passado, importante na vida daquela senhora, resumiu-se em um embrulho de certificados e fotografias, o que você considera essencial para escrever sobre a história dos personagens?

Vendo de longe, temos a impressão de que as pessoas vivem todas da mesma maneira. Mas mesmo a vida daquelas pessoas que, por fora parecem ser muito semelhantes, são muito diferentes. Porque elas podem ter tido as mesmas experiências ao longo da vida, mas cada pessoa deve ter aceitado cada experiência do seu próprio modo. Dentro do romance, o que mostra essa diferença está nos pequenos detalhes. Como as placas e certificados de reconhecimento que Zen guardara por tanto tempo. Essas coisas existem não para exemplificar alguma coisa, mas para tornar única a pessoa que as possui, esses objetos são sinônimo de história também.

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O livro retrata uma série de injustiças sociais. Como a questão da precarização nas instituições, tanto na clínica onde a protagonista trabalha, com os doentes que passam por apuros, como na universidade, com um docente gay demitido. Você levou em consideração algum episódio recente de descaso público?

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Fazendo parte da sociedade onde vivo, eu também sou sujeita, direta ou indiretamente, a injustiças e a desigualdades como qualquer outra pessoa. Ultimamente, tenho pensado muito na questão da “segurança”, porque mortes trágicas e em vão se repetem sem cessar na sociedade coreana: seja indo ao trabalho ou enquanto se trabalha; e, recentemente, até mesmo durante a celebração de um festival, no meio da cidade [Ela se refere à tradicional festa de Halloween que acontece anualmente na cidade de Seul, capital da Coréia do Sul, onde cerca de 150 pessoas morreram pisoteadas depois de um tumulto em 2022]. A maneira com que se procura a causa dessas mortes (ausência de um sistema, insensibilidade à segurança, negligência etc), muitas vezes, é tão rápida que chega a parecer simplista. Chego a me desesperar, ao pensar que podemos estar numa era em que cada um deve se responsabilizar pela sua própria segurança.

Qual é o impacto das mazelas da sociedade na sua literatura?

Sinto que na sociedade coreana, principalmente na cidade de Seul, onde as coisas mudam em grande velocidade, há um conflito entre ideologias, gerações e classes. Por vezes, a sociedade coreana me parece um trem acalorado em altíssima velocidade. Algumas questões sociais podem influenciar diretamente no meu processo de criação, mas na maioria dos casos, sinto que essa grande e quente energia da nossa sociedade serve de força motriz para eu escrever.

A protagonista lida com duas esferas diferentes, vê o ardor da juventude na história da filha, lutando por seus direitos, etc.; já na história de Zen, a morte espreita. De onde partiu essa ideia de unir, ao longo da narrativa, duas figuras em fases diferentes da vida?

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A geração da mãe está entre a da filha e a de Zen. Como a mãe se preocupa com o futuro de sua filha olhando para a realidade de Zen, é muito difícil para ela aceitar o modo de viver da filha. Porque este é o maior medo da mãe. Mas no momento em que decide trazer Zen para dentro de casa, eu acho que a mãe finalmente conseguiu aceitar a vida da filha. Imagino que a mãe tenha passado a entender o modo de viver da filha e, ao mesmo tempo, a vida de Zen através da filha. Mesmo que não tenha compreendido [A FILHA]100%. Nesse sentido, acredito que as vidas de Zen, da mãe e da filha estão estreitamente interligadas.

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