Escritores e intelectuais como os vencedores do Nobel de Literatura Annie Ernaux, Abdulrazak Gurnah e Olga Tokarczuk, a filósofa americana Judith Butler, Ian Mc Ewan, Richard Flanagan e Pilar Quintana, além de editores e agentes literários de todo o mundo, estão entre os signatários de uma carta aberta enviada à Feira do Livro de Frankfurt. Eles protestam contra o cancelamento da cerimônia de premiação da escritora palestina Adania Shibli, vencedora LiBeraturpreis, depois do início da guerra em Israel.
Na ocasião, ela participaria de uma conversa com o tradutor de sua obra para o alemão, Günther Orth. Seu romance A Minor Detail conta a história real do estupro e assassinato de uma menina beduína palestina em 1949 por soldados israelenses, segundo sua editora alemã, Berenberg Verlag.
O prêmio é concedido pela Litprom, uma organização fundada pelo governo da Alemanha e pela Feira do Livro de Frankfurt. Juergen Boos, diretor da feira, disse os organizadores condenam veementemente “o terror bárbaro do Hamas contra Israel” e disse que os organizadores “decidiram espontaneamente criar momentos de palco adicionais para as vozes israelenses” nesta 75ª edição da feira. Uma nova cerimônia de premiação deve ser organizada em outro momento, ainda segundo o comunicado.
Segundo informações iniciais, Adania Shibli havia sido consultada e concordado com o cancelamento da cerimônia. O coletivo independente ArabLit, que atua para a promoção da literatura árabe, desmentiu e organizou a carta divulgada nesta segunda-feira, 16, com mais de 600 assinaturas. À noite, segundo o Los Angeles Times, que antecipou a história, já eram mais de mil assinaturas.
A carta pede que a Feira de Frankfurt reconsidere a sua decisão. “A Feira do Livro de Frankfurt tem a responsabilidade, como grande feira internacional do livro, de criar espaços para os escritores palestinos partilharem os seus pensamentos, sentimentos e reflexões sobre a literatura durante estes tempos terríveis e cruéis, e não de os fechar.”
A Feira do Livro de Frankfurt será aberta oficialmente nesta terça-feira, 17, e segue até domingo, 22. Ali são negociados direitos autorais e realizados debates e encontros sobre assuntos relevantes para o mercado editorial - e para o mundo.
Em outras ocasiões, o evento também foi alvo de críticas, como quando aceitou a participação de editoras de extrema-direita, ou quando levou Salman Rushdie para fazer a conferência de abertura para a imprensa e sofreu boicote do Irã. Em 2022, com a invasão da Ucrânia pela Rússia, a feira vetou o estande coletivo do país, patrocinado pelo governo, e ampliou o espaço para editores e autores ucranianos - e apresentou um discurso pré-gravado por Zelensky.
Leia a carta aberta enviada à Feira de Frankfurt
Os eventos chocantes e trágicos que começaram em 7 de outubro e continuam até hoje tiveram repercussões em todo o mundo, inclusive no mundo editorial. A premiada autora palestina Adania Shibli, que foi finalista do National Book Award 2020 por seu livro Minor Detail (New Directions/Fitzcarraldo, traduzido por Elisabeth Jaquette), receberia o LiBeraturpreis 2023 da Alemanha pelo mesmo livro, publicado em alemão como Eine Nebensache (Berenberg Verlag, traduzido por Günther Orth) na Feira do Livro de Frankfurt 2023, que começa na próxima semana.
Em 13 de outubro, os organizadores do prêmio, Litprom, que é financiado em parte pelo governo alemão e pela Feira do Livro de Frankfurt, divulgaram um comunicado dizendo que Shibli não receberia mais o prêmio durante a feira do livro.
Além disso, uma discussão pública com Adania Shibli e o seu tradutor Günther Orth na feira do livro também foi cancelada.
A declaração dizia originalmente que esta decisão tinha sido tomada de acordo com a autora, o que foi então publicado, sem verificação, por um artigo no The New York Times (agora corrigido). Isto não é verdade. Adania Shibli disse que a decisão não foi tomada com ela, mas que a decisão foi apresentada a ela. Se a cerimônia se realizasse, disse ela, ela teria aproveitado a oportunidade para refletir sobre o papel da literatura nestes tempos cruéis e dolorosos. (Litprom e The Times fizeram correções desde então.)
A editora norte-americana de Shibli, Barbara Epler, da New Directions, escreveu uma carta ao editor do The New York Times. Leia trechos:
Com o inacreditável sofrimento de todos os lados, não serve a ninguém espalhar falsidades, especialmente sobre o autor de um romance sobre a Nakba que é tão historicamente verdadeiro.
Cancelar a cerimónia e tentar silenciar a voz de Adania Shibli “devido à guerra em Israel” é uma covardia.
Mas dizer que Shibli concordou (em meio a todo o sofrimento em Gaza) é pior.
Num momento em que a Feira emitiu um comunicado afirmando que deseja tornar as vozes israelenses “especialmente visíveis na feira”, estão excluindo o espaço para uma voz palestina.
Enquanto o livro Minor Detail de Shibli foi difamado como antissemita por dois jornalistas e editores literários, outros críticos literários sérios claramente refutaram isso na imprensa alemã e em outros lugares. O livro faz referência a eventos bem documentados relacionados ao estupro de uma garota beduína em 1949 por uma unidade do exército israelense.
O editor do Reino Unido de Shibli, Jacques Testard, da Fitzcarraldo, escreve: “Um dos propósitos da literatura é incentivar a compreensão e o diálogo entre culturas. Em um momento de violência e sofrimento tão horríveis, a maior feira de livros do mundo tem o dever de apoiar vozes literárias da Palestina e de Israel. Estamos em solidariedade com Adania Shibli e seus editores alemães, Berenberg Verlag”.
Nesse espírito, aqueles de nós envolvidos em escrita, tradução e publicação afirmamos veementemente que cancelar eventos culturais não é o caminho a seguir. Recordamos a Feira do Livro de Frankfurt apoiando editoras turcas e como o presidente ucraniano Zelensky falou na feira em um discurso pré-gravado no ano passado. A Feira do Livro de Frankfurt tem a responsabilidade, como uma importante feira internacional do livro, de criar espaços para escritores palestinos compartilharem seus pensamentos, sentimentos e reflexões sobre a literatura nestes tempos terríveis e cruéis, em vez de silenciá-los.
Precisamos buscar uma nova linguagem e novas ideias para abordar esses tempos sombrios de uma nova maneira. Para isso, precisamos de escritores - incluindo escritores palestinos - mais do que nunca.
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