Do escritor chileno (nascido na Holanda) Benjamín Labatut, Quando Deixamos de Entender o Mundo busca colocar em xeque a ciência, às vezes Prometeu, às vezes doutor Frankenstein. A epidemia de Covid e a politização da vacina surgem como interrogações sobre o que é realidade e ficção. Labatut discute esse conceitos a partir da literatura em conversa com o Estadão.
O livro aborda a ambiguidade da ciência e surgem interrogações sobre o que é real e realidade, o que não é apenas ficção, mas também alucinação... Sempre serei a favor do desconhecido e do incompreensível. Estou interessado em pensar inflamado pela dúvida, pessoas torturadas pela contradição e paradoxo. Acredito que o território por excelência da literatura não é história, nem verdade estabelecida, mas delírio. Objetividade é necessária e a razão é fundamental, mas eu sou um escritor, e como tal eu prefiro o espaço ambíguo onde os fatos concretos do mundo se desfaçam em nossas fantasias e adquiram nuances insuspeitadas. Acho que a ciência é mais ambígua do que as pessoas suspeitam: se você olhar para elas de perto, você não vai encontrar muitas verdades, mas hipóteses, debates e polêmicas. E é justo que este seja o caso, porque me parece que a ciência é animada por algo mais sombrio e fascinante do que a razão, algo que o italiano Roberto Calasso descreveu muito bem: antes do pensamento, há ardor.
Umberto Eco definiu a literatura como “um pacto entre autor e leitor: o primeiro finge que o que narra é verdadeiro e o segundo finge acreditar”. Como é a “suspensão da descrença” em uma obra como a sua, aparentemente tão factual, mas ao mesmo tempo tão bizarra (no bom sentido)? Não quero que as pessoas acreditem no que escrevo, não quero que suspendam sua descrença. Quero aumentá-la. Meu maior desejo é que as pessoas leiam meus livros e pensem que... isso não pode ser real! E então deixá-los descobrir que é. Porque a literatura não só nos dá acesso especial à verdade, mas tem sua própria verdade, uma que opera sob uma lógica distorcida e sinuosa. É uma inteligência muito particular – pré-modernista e dionisíaca – porque em seu coração bate um aspecto fundamental, que não se limita à literatura, mas faz parte do pleno funcionamento do nosso sistema nervoso, capaz de entrelaçar o real e o irreal, a imaginação e a percepção: a ficção.
Neste livro, a técnica narrativa é mais ensaística ou historiográfica do que estritamente literária. No entanto, os fatos narrados parecem quase rebuscados, como desafio à sobriedade da prosa... Prefiro ensaio e historiografia porque tenho um enorme fascínio pelos fatos do mundo e pela raridade que está escondida em todas as coisas. As histórias que contamos a nós mesmos sobre quem somos não me aquecem. Prefiro ler sobre a estrutura interna de uma molécula letal, ou sobre a paisagem abstrata imaginada por um matemático, do que sobre a vida de poetas chilenos ou as aventuras de uma jovem em busca de sua identidade. Os temas e técnicas da narrativa convencional não me agradam, embora eu não possa fugir completamente deles também. Mas eu tento. As cenas e diálogos da literatura, por exemplo, costumam reproduzir (mesmo sem o autor querer) as coordenadas da realidade que todos conhecemos. Basta que eu veja uma página de diálogo em um livro para saber que não serei capaz de lê-la. Histórias e romances dificilmente me interessam, porque me viciei na epifania, naqueles livros – como os de Pascal Quignard ou Juan Forn ou Elliot Weinberger – em que cada página é uma porta que se abre para o mistério. Não quero me divertir, não quero contar uma história. Quero ficar deslumbrado. Sobre prosa: quanto mais sombria e abstrata a matéria que se quer lidar, mais sóbria e transparente deve ser a prosa. É um roteiro de escravos. Depende de algo maior. Procure outra coisa para brilhar. Porque a literatura não se trata de escrever “bonita”, mas de polir a língua a ponto de afiá-la. Um ponto bem colocado pode perfurar seu coração.
Outra questão levantada pelo livro é sobre a função da imaginação. Além de atestar as inadequações do realismo como técnica literária, se hoje tudo é ficção, não é nada ficção? A ficção é uma das maneiras pelas quais o ser humano dá sentido ao mundo. É uma camada, um bálsamo que espalhamos sobre as coisas, sobre cada uma das coisas, para lhes dar forma humana. Há ficções que se conformam tão estreitamente com os fatos do mundo e as pessoas as confundem com a própria realidade. Acho que não devemos nos perguntar se algo é real ou falso, ficção ou não ficção. A pergunta chave é: o que ele me permite ver? Isso é para tudo, arte, ciência, religião, espiritualidade. Sem ficção, ficaríamos cegos e nus. A vida não seria apenas mais pobre, mais triste e mais feia, como seria inabitável. Mais do que distinguir entre fato e ficção, acredito que devemos distinguir entre ficções boas e ruins. Os maus escurecem o mundo. Não importa se são notícias falsas, livros de história, best-sellers baseados em realidade ou propaganda política. Boas ficções, por outro lado, nos iluminam. Você viveu na Holanda, Peru, Argentina e mora no Chile. Na era da globalização, ainda faz sentido falar sobre a nacionalidade do autor? O que menos me interessa em um autor é sua nacionalidade. Porque acredito em alienígenas. Borges, Kafka, Lispector, Quignard, Burroughs, Sebald, não são deste mundo. Eles não são de nenhum país. Ou talvez sejam do país da literatura, que é povoado por monstros, ninfas e fantasmas, cobertos de merda e ouro. Mas também há muitos escritores que estão ligados a um território, uma nacionalidade, um povo ou uma circunstância. Leonardo Sciascia é a Sicília? Não sei, não sei. O que seria da Sicília sem Sciascia? E Borges, ele é argentino, ou é toda a literatura da Argentina? A nacionalidade de um autor, seu gênero, sua condição política, a cor de sua pele... tudo isso pode ter muita ou pouca importância, mas empalidece ao lado da única coisa que realmente importa: se você sabe escrever bem, se você tem cheiro, coragem, sutileza e compaixão. E nisso, o passaporte não ajuda em nada.
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