Empreitada temerária, essa de resenhar um livro de altíssima qualidade e já excelentemente introduzido por Ruy Mesquita Filho e Celso Lafer nas duas edições anteriores. Haverá ainda algo a dizer? Ruy e Celso ressaltaram a densidade do livro, a impecável pesquisa que lhe serviu de base e a prosa escorreita e elegante do autor, Roberto Salone. A tudo isto devendo-se acrescentar, como é óbvio, a superlativa presença de Julio de Mesquita Filho na vida brasileira, como homem de cultura, político e jornalista, ícone incontestável do principal jornal brasileiro.
Não me foi fácil resistir à tentação de seguir as pegadas do autor, relembrando a formação de Julio de Mesquita Filho – sua participação na Liga Nacionalista de Olavo Bilac e na última campanha civilista de Rui Barbosa, seus tempos de estudante na Faculdade de Direito de São Paulo, a criação e modernização do Estado, a idealização da Universidade de São Paulo. No plano da política nacional, seu apoio inicial e a subsequente decepção com a Revolução de 30. O firme combate à ditadura de Getúlio Vargas, que lhe valeu várias prisões e um longo exílio. Realmente, refazer esse percurso é algo que eu gostaria de ter feito, mas, para nossa sorte, coube a Roberto Salone enfrentar e vencer tal desafio.
Ao fim e ao cabo, creio que foi uma certa inveja o que me levou a elaborar o texto que ora passo às mãos do leitor. “Irredutivelmente liberal” é como gosto de me ver, e é o que tenho tentado demonstrar em meus trabalhos, entre os quais destaco o ensaio Rui Barbosa e a Construção Institucional da Democracia Brasileira, publicado em 1994 pela Fundação Casa de Rui Barbosa, Tribunos, Profetas e Sacerdotes, publicado em 2014 pela Companhia das Letras e Liberais e Antiliberais, publicado em 2018 pela mesma editora.
O estudo Irredutivelmente Liberal – Política e Cultura na Trajetória de Júlio de Mesquita Filho foi elaborado sob a orientação da professora Marisa Veloso, da Universidade Nacional de Brasília, e apresentado como tese de mestrado no Instituto Rio Branco. Que relevância pode ter uma biografia de Julio de Mesquita Filho para a carreira diplomática? Quem faz esta pergunta é o próprio autor, e sua resposta, mais que convincente, é enriquecedora. O diplomata não pode prescindir de um conhecimento aprofundado da “identidade” do país que irá representar, e para isso a biografia de personalidades marcantes na vida nacional é uma via extremamente fecunda. Ficam assim definidos o fio condutor e o objetivo do trabalho: delinear a “visão de país” do personagem biografado.
O que desde logo chama a atenção em Julio de Mesquita Filho é a firmeza de suas atitudes, sua postura enérgica, traços que de modo algum conflitaram com sua lhaneza no trato com colegas de trabalho e com os numerosos parceiros com quem conviveu em suas várias atividades. Tampouco a tolerância e a franca civilidade que manteve no relacionamento com outras grandes personalidades de seu tempo, que nem sempre partilhavam suas convicções. Cláudio Abramo a ele se referiu como “um dos poucos homens de caráter reto que conheci em toda a minha vida”.
Embora a autodefinição básica de Julio de Mesquita Filho tenha sido a de jornalista, ele pode e deve ser tratado como um homem de cultura, um intelectual de escol. Seu liberalismo ancorava-se em uma sólida base filosófica, e é por isso que ele, ao contrário de muitos intelectuais de sua época, não refugou ante os difíceis dilemas que se antepõem à construção de uma democracia liberal num país pobre, recém-saído da escravatura. Como sustentar, contra uma infinidade de indicações negativas, a crença na autonomia do indivíduo, na viabilidade de instituições políticas capazes de transcender o domínio de oligarquias tacanhas, na progressiva configuração de uma economia de mercado e de uma sociedade aberta? Indicação suficiente da densidade de seu liberalismo é ter ele rechaçado a falácia – até hoje infelizmente muito comum – de contrapor a democracia liberal à chamada “questão social”, vale dizer, ao imperativo do combate à pobreza e às desigualdades de oportunidades e de renda. Esta, com sabemos, é a rota de fuga a que mais recorrem muitos – na universidade, no clero, nas profissões... – que, inclinados a alguma forma de autoritarismo, encobrem tal opção apelando para a suposta insensibilidade das democracias em relação aos destituídos da sorte.
Retomo, porém, o fio da meada, uma vez que meu compromisso é suscitar algumas questões a respeito do livro de Roberto Salone. Imagino poder fazê-lo tocando em três pontos. O primeiro é que a expressão prática do liberalismo de Julio de Mesquita Filho é um rechaço terminante a todo tipo de ditadura. Quanto a este ponto, parece-me essencial recuperar uma observação feita por Ruy Mesquita Filho em seu prefácio às edições anteriores, a de que vivemos hoje, em numerosos países, um momento de retrocesso. No Brasil, retrocedemos na economia e na educação, e mais ainda na política, pois nesta o que hoje estamos vendo é “um país conflagrado de forma nunca imaginada, numa escalada vertiginosa rumo ao obscurantismo e ao fanatismo dos tempos da Inquisição, o que, com certeza, não acabará bem”.
Julio de Mesquita Filho, como acertadamente frisa Roberto Salone, recusou todas as formas de autoritarismo, desde os caudilhismos que durante séculos têm infelicitado a América Latina até os regimes totalitários – comunismo e nazifascismo, “casos de patologia social”: as grandes máquinas de matar que se constituíram na Europa entre as duas grandes guerras. A questão que aqui inevitavelmente se impõe é por que uma parcela substancial dos letrados brasileiros (e latino-americanos) sempre simpatizou com regimes totalitários, ou pelo menos se mostrou leniente ou indiferente em relação a eles? As respostas tradicionais a esta indagação remetem aos “grilhões do passado” – ou seja, a nossas distantes origens no absolutismo português, na Contrarreforma e na colonização. Mas serão estas respostas ainda satisfatórias em pleno século 21, com a pronta disponibilidade, a custo zero, de uma vasta quantidade de informação histórica sobre todo tipo de ditadura, inclusive sobre as formas extremadas a que me referi? Penso que o gigantesco avanço do conhecimento histórico nos últimos trinta ou quarenta anos contrasta com uma perturbadora inércia no que concerne a certas atitudes ainda amplamente disseminadas entre nós. Refiro-me aqui a um manifesto desinteresse em colocar os novos conhecimentos disponíveis a serviço de outro entendimento das ditaduras e de uma nova sensibilidade em relação a elas.
Durante várias décadas, como sabemos, intelectuais engajados na visão de esquerda sempre pretenderam estabelecer uma distinção entre o comunismo, cuja fundamentação filosófica seria em última análise humanista e universalista, e o nazifascismo, a mais pura e horrenda manifestação do irracionalismo na história humana. Essa distinção pode ser verdadeira nas alturas da filosofia, mas tem pouco ou nada a ver com o que se tem designado como o “socialismo realmente existente”. Por que, pergunto, a docência das ciências humanas ainda se mostra tão reticente em trazer as novas fontes a que me referi para a sala de aula? Quantos professores terão discutido francamente com seus estudantes o Holodomor, ou seja, o terror pela fome, o deixar morrer por inanição, imposto pelo governo de Stalin à Ucrânia no segundo semestre de 1932 e no primeiro de 1933, que levou à morte, só ali, na Ucrânia, mais de 5 milhões de pessoas – número tão espantoso que forçou os administradores soviéticos dessa matança a recorrerem à cremação de milhares e milhares de cadáveres? Além de livros magníficos, imagens e mais imagens podem ser encontradas no YouTube, inclusive um magnífico filme ucraniano, legendado, com aquele título – Holodomor. Sem ir tão longe, temos aqui bem perto, num país vizinho, a ditadura de Nicolás Maduro, beneficiária de uma obscena leniência, e até o grotesco de um parlamentar de extrema-esquerda propondo, na Assembleia Legislativa de São Paulo, um voto de louvor ao regime da Coreia do Norte!
Um aspecto delicado no pensamento de Julio de Mesquita Filho, apontado por Roberto Salone, é seu caráter contraditório. De fato, Julio de Mesquita nunca se livrou inteiramente de certo racismo. Decepcionado com a derrota eleitoral do Brigadeiro Eduardo Gomes, atribuiu-a obliquamente à participação de certos grupos que considerava despreparados para a participação na democracia, objetando, por exemplo, à extensão do sufrágio a imigrantes pobres que aqui aportavam. Assim, para ele, a construção de uma democracia brasileira tinha como requisito sine qua non uma enérgica revolução educacional, projeto que ele via como um indispensável protagonismo iluminista de São Paulo. Penso que tais contradições e preconceitos foram o preço que Julio de Mesquita Filho pagou por um equívoco comum na época, e ainda hoje presente no pensamento brasileiro: uma tendência a conceber a democracia como um ponto de chegada, uma condição a ser desfrutada por um país somente após haver ele atingido altos índices de desenvolvimento material e bem-estar. Ora, a democracia, entendida em termos conceituais e comparativos, é bem o oposto disso. É uma engrenagem institucional concebida para equacionar, com o mínimo possível de coerção e violência, os conflitos de interesse que diuturnamente emergem no tecido de qualquer sociedade. Nesta perspectiva, é evidente que a democracia não pressupõe uma igualdade de capacidades, teoricamente assegurada por um alto nível médio de escolaridade no corpo eleitoral. Ela pressupõe, isto sim, um alto grau de incerteza, ou seja, uma virtual impossibilidade de um grupo ou partido determinar de forma cabal os resultados dos pleitos. Pressupõe também – mas este infelizmente é um ponto que não posso explorar nos limites do presente texto – uma engenharia institucional adequada e a fidelidade dos integrantes das diferentes instituições à missão que lhes é própria. Nesse aspecto, o atual momento brasileiro é preocupante, pois, com certeza, não podemos dizer que este requisito esteja sendo devidamente observado.
O argumento conceitual que venho de expor deve ser reforçado por uma evidência factual também muito importante. Um dos pilares do liberalismo de Julio de Mesquita era um iluminismo educacional (fortemente assentado na experiência de São Paulo) que o levava a superestimar a capacidade dos eleitores de assimilar e contextualizar as questões em debate na esfera pública. Isso é uma ilusão, e aqui não me refiro só ao Brasil, mas a qualquer país. Em seu titânico esforço para vislumbrar um horizonte liberal-democrático para o Brasil, ele não atinou com uma forma de conciliar sua crença liberal com a realidade empírica, na qual eram ainda perceptíveis as marcas da escravidão e do analfabetismo generalizado. Penso que as três razões apontadas – a democracia como uma contínua construção, não como um ponto de chegada; o mar de pobreza e ignorância no Brasil daquela época; e a inevitável estratificação dos eleitorados em termos de capacidade cognitiva – explicam por que ele não conseguiu se desvestir de suas premissas elitistas e racistas. Acrescente-se que ele não deu o devido peso a um fato já evidente em seu tempo, o de que uma parcela importante dos cidadãos altamente escolarizados – aqueles que genericamente designamos como intelectuais – frequentemente aparecem na arena política como uma força poderosa contra a democracia e o mercado.
Uma terceira contradição apontada por Roberto Salone diz respeito ao posicionamento de Julio de Mesquita Filho em relação ao golpe de 1964. Realmente, como entender que um “liberal irredutível” tenha atuado como conspirador, atuando ativamente na organização de uma intervenção militar que suspenderia quase completamente as práticas democráticas durante 21 anos? E mais, que tenha apoiado o regime militar em seu período inicial, passando a fazer-lhe oposição ao perceber seu potencial autoritário? Neste particular, a verdade é que a história não perde uma chance de nos pregar alguma peça. Em situações críticas, ela quase nunca nos apresenta escolhas “fáceis”, com um Bem nítido de um lado e um Mal também nítido do outro. Uma interpretação martelada durante décadas foi a de que o governo de João Goulart não teria caído por seus defeitos, mas por seus méritos. Com o benefício do recuo histórico – estamos afinal falando de uma situação vivida há mais de meio século –, tal interpretação pode ser uma rima, mas não é uma solução. A complexidade dos acontecimentos daquele período não se acomoda a uma fórmula tão singela. A esse respeito, penso, portanto, que jamais chegaremos a um acordo. Alguns de nós entenderemos que o “contraditório” Julio de Mesquita traiu seus ideais liberais. Outros dirão que ele optou pela saída que lhe parecia necessária para evitar um mal maior.*BOLÍVAR LAMOUNIER É CIENTISTA POLÍTICO. AUTOR DE ‘LIBERAIS E ANTILIBERAIS: A LUTA IDEOLÓGICA DO NOSSO TEMPO’
Irredutivelmente Liberal Autor: Roberto Salone Editora: Albatroz/ Terceiro Nome 408 páginas R$ 69 (e-book: R$ 33) Disponível no site: www.terceironome.com.br Vendas: info@wmfmartinsfontes.com.br Contato: fone +55 11 32938150
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