Biografia de Nietzsche deixa filosofia para falar da vida privada

Pensador sofreu com problemas de saúde e a distorção posterior de sua obra

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Por Parul Sehgal

Durante toda a vida, Friedrich Nietzsche odiou ser fotografado. Chamava a fotografia de “execução pelo Ciclope de um olho”. Em quase todas as fotos que sobreviveram, ele parece evasivo, incomodado, “como se suas roupas fossem emprestadas”, escreve Sue Prideaux numa nova e exemplar biografia do filósofo, I Am Dynamite!. “Seu paletó estava sempre repuxado pelos botões, os ombros e joelhos pareciam estar no lugar errado.” 

Cena de 'Os Dias de Nietzsche em Turim', de Júlio Bressane Foto: Grupo Novo de Cinema e TV

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Um homem enfiado em roupas erradas. É assim que Nietzsche nos chega por meio da história, açambarcada durante décadas por nazistas e nacionalistas. Sob as vistas da irmã, Elisabeth, criada pessoal de Hitler, Nietzsche foi apresentado como um arquiteto intelectual do Terceiro Reich – ele, que deplorava o nacionalismo alemão (“Alemanha, Alemanha acima de tudo – esse é o fim da filosofia alemã”) e o antissemitismo (“fuzilaria todos os antissemitas”). Exemplares de Assim Falou Zaratustra eram distribuídos pelos nazistas aos soldados no campo de batalha. 

Cinquenta anos de estudos e pesquisas contribuíram para reabilitar a reputação de Nietzsche e revelar a extensão da intromissão de Elisabeth em sua vida. A irmã assumiu os cuidados de Nietzsche nos anos finais do filósofo, quando, apesar de famoso, ele já estava dominado pela loucura. Com a aprovação tácita de Heidegger e declarações fora de contexto, mas venenosamente reunidas, ela mostrou Nietzsche como um porta-voz do nazismo. Seus conceitos de Übermensch (super-homem) e vontade de poder foram esvaziados da provocação e zombaria originais e reduzidos a um autoritarismo cruel. As “duras máximas” que ele propõe ao indivíduo – ser corajoso, não fugir do inimigo e ter prazer na guerra – foram tomadas de modo grosseiramente literal e adotadas por nações – ironicamente, já que o que Nietzsche mais abominava, além da guerra (para ele, uma forma de loucura), era a própria ideia de nação (ele abdicou da cidadania prussiana no começo da carreira e se manteve orgulhosamente apátrida). 

Nesta biografia, Prideaux tira Nietszche das sombras e rumores que sempre o cercaram, evocando suas belas maneiras, os óculos de lentes azuis que protegiam seus olhos frágeis e até seu ridículo bigode. Ela emprega o método da triangulação, mostrando o biografado pelos eventos de sua vida, sua escrita e sua obra publicada. “Isso resvala na falácia bibliográfica, bem sei”, disse ela em entrevistas, “mas minha justificativa é uma passagem de Além do Bem e do Mal na qual Nietzsche diz que toda grande filosofia é uma forma de evocação involuntária e não percebida de memórias. Em outras palavras, toda filosofia é, por extensão, uma autobiografia. Uma ilumina a outra.”

Nietzsche disse: “Para se enxergar algo como um todo, a pessoa deve ter dois olhos: um de amor e outro de ódio.” Mas, para se enxergar totalmente Nietzsche, talvez fosse preciso uma visão binocular que acomodasse o sublime e o ridículo. Sua vida consistia em trabalho prodigioso e autossacrifício, mas ele tinha também seu lado trapalhão. Por exemplo, durante as férias ele possivelmente perderia os óculos, a bagagem, o próprio rumo. E seu ídolo e mentor, Richard Wagner, sugeriu numa carta enviada a um inimigo assumido de Nietzsche que a lendária má saúde do filósofo teria origem em sua tendência à masturbação compulsiva. 

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Freud dizia que Nietzsche era o único homem que realmente conhecia a si mesmo. Suas cartas podem às vezes ser engraçadíssimas, cheias de lances cômicos. Prideaux liberou esse lado do biografado. Ajudou o fato de ela ser especialista em vidas de gênios histriônicos do século 19. Suas premiadas biografias anteriores foram de August Strindberg e Edvard Munch (ambos nietzschianos apaixonados – Munch pintou O Grito após Strindberg apresentá-lo à obra de Nietzsche). 

A despeito da grande influência que exerceu, Nietzsche teve uma vida curta e solitária. O material para um biógrafo explorar é principalmente sua intensa amizade com Wagner e com Lou Salome, uma carismática intelectual da época, musa de Rilke e Freud. Prideaux contribui principalmente com nuances psicológicas. 

O pai de Nietzsche morreu cedo, de “amolecimento cerebral”, após sofrer anos com dores de cabeça arrasadoras e surtos periódicos de mudez. Algum tipo de doença ou transtorno neurológico pode também ter afetado o filho (Prideaux tem dúvidas de que ele fosse portador de sífilis). Na infância, tinha dores de cabeça excruciantes, além de dores nos olhos. Um médico da escola previu que ele ficaria cego. Os tratamentos eram dolorosos e humilhantes. Uma vez, foi deixado no escuro por uma semana. Outra vez, sanguessugas foram aplicadas a suas orelhas, para sugar sangue da cabeça. Posteriormente, no campo de batalha de uma guerra da Prússia com a França, ele contraiu difteria e disenteria. O tratamento da época – nitrato de prata, ópio e ácido tânico – destruiu seu intestino. Na vida adulta, sofria de uma incontrolável ânsia de vômito, hemorroidas, dores nos olhos e tinha um constante gosto de sangue na boca. 

Nietzsche passou boa parte da vida, mesmo em períodos de melhor saúde, frequentando spas nos Alpes, numa busca desesperada de cura. Levava sempre consigo mais de cem quilos de livros na bagagem. Ele conseguiu, porém, “tirar vantagem de suas aflições”, diz Prideaux. Seu famoso estilo – os aforismos fulminantes – foram o modo que encontrou de condensar o pensamento durante os momentos de trégua entre as dores “Minha meta é dizer em 12 frases o que qualquer outro só consegue dizer em um livro inteiro – ou nem em um livro inteiro”, escreveu em Crepúsculo dos Ídolos. 

A filosofia ocupa pouco espaço no livro. Nos créditos, Prideaux agradece ao filósofo Nigel Warburton por supervisionar essa seção – com sumários eficientes, porém desapaixonados. Eles não transmitem a atração de Nietzsche pelo dionisíaco, sua fúria contra a tendência humana à submissão e à autoescravização, sua queda pelo naufrágio. A preocupação maior de Prideaux é com o estilo de Nietzsche. Foi o estilo, claro, que o deixou tão vulnerável a distorções (ainda deixa: o nacionalista branco Richard Spencer diz que é “eletrizado” por ele). Nietzsche não criou uma escola ou sistema de pensamento, mas um espírito de investigação. Ele se descrevia como o “filósofo do talvez”. Uma vez terminou um livro com “Ou...”

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Nietzsche era adepto da ideia de Ovídio de que vive bem quem não aparece muito. Seguindo seu exemplo, poderíamos objetar: “Talvez”. Como deixa claro este atento e escrupuloso retrato, pode também haver grandes prazeres em ser percebido. / Tradução de Roberto Muniz 

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