O crítico Kenneth Tynan dividiu os dramaturgos em duas categorias, “fáceis” e “complicados” e provavelmente podemos fazer uma distinção similar no caso dos biógrafos. Os mais fáceis de ler oferecem uma narrativa clara, os temas são bem enfatizados e eles inserem momentos de suspense para atrair o leitor. Seus livros estão nas listas dos mais vendidos.
William Feaver, autor de The Lives of Lucian Freud (As vidas de Lucian Freud) – o segundo volume, Fame, 1968-2011, saiu agora – se insere no extremo oposto. Há pouca sutileza nele. Sua biografia é mais cabeluda do que um macaco.
Feaver, que há muito tempo é crítico de arte do The Observer, de Londres, não oferece um retrato inalterado de Lucian Freud, o grande pintor realista, como quando nos faz adentrar num estúdio repleto de pincéis duros de tinta, espátulas, quadros telas semiacabadas, cavaletes, assoalhos sujos, cavaletes, apoios de mão e aguarrás, e nos deixa tocar nos detritos como se para fazermos um retrato de nós mesmos.
Alguns críticos entendem que a qualidade não intervencionista, caótica, dessas biografias é mais uma característica do que um defeito. Procurei entender o livro nesse sentido. Ler esses livros prolixos e desordenados é como desenrolar um microfilme.
Neto de Sigmund Freud, Lucian nasceu em Berlim em 1922. Seu pai era arquiteto e a família fugiu para a Inglaterra em 1933, pouco depois de os nazistas chegarem ao poder. Ele nasceu com um dedo extra no pé que a família, para seu desapontamento, removeu. Mais tarde nasceu um dente similar a uma presa de tubarão entre seus dentes da frente, que também foi removido.
Freud serviu como marinheiro por um período breve na Segunda Guerra Mundial. Tornou-se um pintor porque, segundo Feaver, “costumava andar por aí dizendo que era pintor” e “depois de um tempo tinha de fazer alguma coisa para mostrar”. Mais tarde iniciou uma carreira na arte e ascendeu socialmente. Sua segunda mulher foi Caroline Blackwood, herdeira da fortuna Guinness.
Sentar para ser retratado por Lucian não era tão diferente de sentar no sofá de Sigmund Freud. As sessões duravam meses, talvez anos. A diferença era que as visitas de Lucian normalmente tiravam a roupa.
Lucian e seu ego furioso seriam um interessante tema de estudo para seu avô. O artista era uma pessoa amoral: violento, egoísta, vingativo, lascivo. Viveu como uma criança birrenta. Se não era um demônio, certamente era o advogado do diabo.
Freud necessitava de novas amantes como um diabético necessita de insulina. Ele buscava mulheres jovens para pintar e dormir com elas, mas raramente precisava insistir, pois elas vinham até ele. Era um homem bonito e um gênio e oferecia, como disse uma das suas amantes, o atrativo da vida de estúdio, “champanhe sobre o assoalho sujo”. Ser pintada por ele era cada vez mais uma chance de ser perpetuada culturalmente.
Freud não era um homem de família. Não mantinha laços estreitos com os irmãos. Mas pintou uma série de retratos da sua mãe em mais de mil sessões de quatro horas.
Freud tinha um palavrão para todo mundo. Um comentário típico neste volume, sobre uma tia, é este: “ela era asquerosa, realmente. Sua expertise era abrir cartas. De outras pessoas”. Se Lucian não gostava de você, ele o erradicava totalmente da sua vida, como um câncer.
Ele tinha uma ética de trabalho fortíssima e produziu quase até o fim. Viveu no sentido imperativo e não esmoreceu. E se manteve no centro da sua própria arrogância. Não havia uma grande discrepância, como na vida de outros, entre ser despreocupado e ser um abutre.
Tradução de Terezinha Martino
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