Existem mil e uma camadas de interpretações, interpelações e louvações em torno da Semana de Arte Moderna de 1922, que se realizou em 13, 15 e 17 de fevereiro no Teatro Municipal de São Paulo. Há cem anos de distância dela, é hoje quase impossível pensá-la sem a “ajuda” de pesquisadores, musicólogos, críticos literários, pensadores brasileiros e palpiteiros digitais em geral.
Este é o maior acerto da caixa contendo livreto e quatro CDs Toda Semana: Música e Literatura na Semana de Arte Moderna, idealizada pelas irmãs Cláudia e Flávia Toni e Camila Fresca, responsáveis pelos ensaios e pesquisas musicológicas, e com direção musical do violinista e regente Cláudio Cruz. O acesso universal e democrático, gratuito, em sesc.digital/colecao/todasemana, disponível desde o dia 17 de dezembro, é também fundamental. Qualquer pessoa pode ir direto ao ponto. Isto é: ouvir trechos das palestras de Graça Aranha (o guru cinquentão do bando de jovens liderado por Mário e Oswald de Andrade que bagunçou o coreto dos tradicionalistas) e do poeta Menotti Del Picchia; ler os poemas musicados por Villa-Lobos e ouvir excepcionais gravações das canções pelo barítono Homero Velho e por Mônica Salmaso.
Intérpretes
Encurtando: você acessa o link. Pega o cardápio do primeiro dia, 13 de fevereiro de 1922, e simplesmente lê a palestra de Graça Aranha, os poemas e depois ouve as performances musicais. Noventa por cento de tudo que se ouviu na Semana era assinado por Villa-Lobos, de peças para piano e canções, de sonatas para violoncelo e piano a dois trios com piano e ao Quarteto Simbólico, está tudo lá. Os intérpretes, além dos citados, são músicos consumados. Assim, Cristian Budu toca o que Guiomar Novaes apresentou; um supertrio formado por Ricardo Castro (piano), Cláudio Cruz (violino) e Antonio Meneses (violoncelo) encarrega-se dos trios. E assim por diante.
Sem intermediários, você sai transformado depois de ler os poemas, textos de palestras e ouvir a música da Semana. E começa a entender as razões que fazem dela um evento-ícone na cultura brasileira há um século, como indica Camila Fresca, em entrevista ao Estadão. Coautora, com Flávia Toni, do excelente e mais encorpado artigo do box sobre a música na Semana (Três Festas de Arte ou A Semana que Sacudiu São Paulo), ela afirma que “a Semana foi se tornando um evento-ícone da cultura brasileira ao longo das décadas. Nasceu irreverente, contestadora, mas não consagrada. Ao mesmo tempo, acho que devemos enxergar a Semana não apenas como um evento em si, mas como a explosão pública de um movimento que se organizaria e produziria seus frutos ao longo do tempo; especialmente se pensarmos nas obras de seus idealizadores, no decorrer das décadas de 1920 e 1930. Creio que a imagem da Semana continua forte. Mesmo revista e relativizada, o fato de se discutir, debater ou mesmo refutar o evento mostra a importância que ele segue tendo no imaginário e na cultura brasileira”.
Caixa de ressonância
Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo, põe uma pitada interessante em seu texto de apresentação ao chamar o projeto de “uma nova ‘caixa de ressonância’ das ideias, experimentações e invenções aglutinadas e disseminadas pela Semana. Mais do que isso, condensa nas mídias que integram o presente box o espírito de novidade e transformação dos modernistas brasileiros de primeira onda, ao menos dos sudestinos, em suas expressões verbais, sonoras e musicais, audíveis depois de um século”.
O impacto provocado pela leitura dos textos, palestras e poemas, assim como pela audição dos quatro CDs, indica que a música foi a arte predominante na Semana em 1922. Por que isso se deu? Camila responde que “a música foi a arte que se organizou de forma mais profissional. Portanto, estamos falando mais de contingências do momento do que de uma valoração artística em si. Creio que as artes plásticas já haviam produzido obras bastante inovadoras, e para pensar num exemplo só, basta olhar para os incríveis quadros de Anita Malfatti”.
Camila prepara uma biografia do maestro e justifica assim o destaque dele na Semana: “O que acontece é que a música ficou concentrada praticamente nas mãos de um único compositor, Heitor Villa-Lobos. Villa não foi um entusiasta de primeira hora do evento. Ao ser procurado, propôs uma série de concertos, já com os intérpretes que eram de sua confiança, e elaborou um orçamento, que foi aprovado por Paulo Prado. Villa-Lobos veio a São Paulo contratado e recebendo cachê. Ele e seus intérpretes chegaram com antecedência na cidade, ficaram em hotéis e realizaram ensaios. É por isso, inclusive, que é mais fácil recuperar a música tocada na Semana do que o que foi exibido ou declamado. Houve menos improviso na parte musical, e foram chamadas duas personalidades que já eram artistas formados - Villa-Lobos e Guiomar Novaes - e não jovens escritores e jornalistas que, muitas vezes, ainda engatinhavam em suas áreas”.
Em fevereiro de 2022, no mês do centenário da Semana, o selo Sesc vai lançar o box físico com o livreto bilíngue (português e inglês).
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