Brincadeiras e crianças atípicas: interação exige amor, paciência e engajamento dos pais

Em meio à pandemia de covid-19, com o isolamento social, muitas famílias são desafiadas a praticar a criatividade com os filhos

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Algumas coisas são naturalizadas na relação entre pais e filhos e você começa uma família achando que é só repetir o que os outros já fizeram e vai dar tudo certo. O único pormenor é que maternidade e paternidade não possuem um manual de instrução. Na ‘seara’ das brincadeiras, é preciso aprender o tempo inteiro, isso porque ser criança ficou distante de nossas rotinas. Assim sendo, para cultivar e colher frutos dessa ‘extensão de terra’ que foi quase apagada da memória, é preciso ‘reaprender’ a brincar. “Essa parte, para mim, é a mais difícil porque, nesses últimos meses, ganhei uma hérnia, então, para eu abaixar e ficar com a Gabriela está sendo meio sofrido, mas estou tentando fazer um esforço para melhorar”, desabafa Cristiano Bichara Leal. Ele e Vanessa Marques de Medeiros Leal moram no Rio de Janeiro e são pais de Mariana, de 10 anos, e de Gabriela, 5, que teve diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA) em meio à pandemia do novo coronavírus. “Sempre o ‘trunfo’ paras as brincadeiras é a Mariana, porque ela adora brincar com a irmã. Seguindo com a terapia ABA (Análise do Comportamento Aplicada), a gente vai vendo o aprender a brincar e a se comunicar com a criança”, afirma. 

Cristiano Bichara Leal, Vanessa Marques de Medeiros e as filhas Mariana, de 10 anos, e Gabriela, 5 Foto: Wilton Junior/ Estadão

“Além de ser um período difícil para todos, pois não têm como brincar com muitas pessoas, socializando livremente, as crianças com atrasos no desenvolvimento, como TEA e Síndrome de Down, costumam ficar ainda mais agitadas. Por isso, é importante que os pais ou responsáveis mesclem atividades”, esclarece a neuropsicóloga Bárbara Calmeto, diretora do Autonomia Instituto. Antes de ser diagnosticada com TEA, Gabriela enfrentava problemas na comunicação. Assim que nasceu, teve de passar por uma cirurgia para a retirada de um tumor. Além disso, o teste da orelhinha, responsável por verificar o funcionamento da audição, registrou alteração. “Gabriela usa aparelho auditivo desde bebezinha, mas a gente começou a perceber que, com sete meses, ela respondia a alguns sons, porém o aspecto motor não estava respondendo como outras crianças. A gente já tinha a Mariana e é natural que os pais comparem o desenvolvimento de uma filha com a outra na mesma idade. A pediatra sempre falava que cada uma tem seu tempo, mas a gente ficava com a ‘pulga atrás da orelha’, né?”, lembra Leal. Mesmo sem falar, Gabriela desenvolveu uma comunicação não verbal que a família entende. “Ela passou por uma infinidade de neurologistas. Ninguém descobriu. Então, o meu sobrinho foi levado ao especialista com suspeita de autismo e sugeriram essa médica para Gabriela. Conseguimos o diagnóstico de TEA em agosto”, afirma o pai. A mãe dela é enfermeira e também enfrenta uma rotina de trabalho puxada, sobretudo por causa da pandemia de covid-19.  Mesmo com a correria, Cristiano e Vanessa se engajaram e aprenderam a se comunicar melhor com a filha que, antes da terapia comportamental, não conseguia olhar para os pais. “Agora ela olha para alguém que quer brincar. Antes, ela não sabia a utilidade, por exemplo, blocos de encaixe. Não fazia ideia que era para colocar em um espaço vazio. Ficava com a peça na mão ou brincava arremessando. Agora, aprendeu a brincar. E eu aprendi que tenho que ficar na altura dela, falando de maneira clara, sucinta, para ela poder entender e cumprir o papel”, diz Leal. Uma peça do bloquinho de montar encaixada. Um olhar. Um sorriso. Aquilo que parece um detalhe para muitos, no desenvolvimento atípico, é uma grande evolução. “E a melhor coisa é ver aquela gargalhada que dá depois. Ainda mais que os dentinhos de leite caíram, está com uma cara de levada que fica mais fofa ainda. Cada vez que ela reconhece uma coisinha nova é importante. Nesses últimos dias, Gabriela de fato passou a reconhecer a irmã, a procura, coisa que não fazia antes. E isso não tem preço, porque a Mariana sempre a amou demais”, se emociona Cristiano Bichara Leal. 

A pequena Gabriela, que tem TEA, brinca com a irmã Mariana durante isolamento social Foto: Wilton Junior/ Estadão

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Uma simples interação no mundo da fantasia infantil pode fazer a diferença no desenvolvimento cognitivo das crianças como atenção, memória, raciocínio, resolução de problemas simples do cotidiano e outras funções executivas. “De maneira geral, toda brincadeira é estimulação, pois trabalha os aspectos sociais, comunicativos, motores e cognitivos. Quando a família entende as dificuldades da criança e foca as brincadeiras nos comportamentos-alvo, essas habilidades ficam fortalecidas”, explica Bárbara Calmeto. A neuropsicóloga acrescenta que os pais precisam aproveitar todas as chances de interação. “O banho, as refeições, o parquinho, a hora de dormir, todos esses momentos podem se tornar oportunidades de estimulação”, diz.

Se a comunicação com o seu pequenino não está acontecendo da maneira como você esperava, além de buscar o apoio de especialistas, uma simples atitude como sentar no chão, deixar o celular de lado e dar atenção para ele fará a diferença. O ditado popular diz que “ninguém nasce sabendo”, mas não explica que criar filhos é um eterno aprendizado, com tentativas, erros e acertos, incluindo o brincar com eles. 

A neuropsicóloga Barbara Calmeto, diretora do Autonomia Instituto Foto: Instagram/@autonomiainstituto

Confira 10 brincadeiras para fazer em casa com crianças com atrasos no desenvolvimento

Quando se trata de crianças com atrasos no desenvolvimento, o mais importante é que as brincadeiras sejam feitas sob supervisão de um adulto e que os pais direcionem as atividades como maneira de estimulação, sempre com o objetivo de melhorar os comportamentos que não estão adequados. Por exemplo, se ela for colocar uma peça na boca, é preciso redirecionar esse comportamento para que consiga cumprir a atividade desejada. Até 12 meses, colocar objetos na boca é normal, pois a criança está explorando o ambiente através dos seus sentidos. Mordedores ou brinquedos macios são ideais.  A pedido do Estadão, a neuropsicóloga Bárbara Calmeto, diretora do Autonomia Instituto, fez uma lista com 10 atividades para fazer em casa com os pequenos. São brincadeiras para crianças a partir de dez meses, como as sensoriais e tintas caseiras, até blocos de montar simples e grandes. Outras são mais indicadas a partir de 18 meses, como quebra-cabeças, blocos de montar ou massa de modelar caseira. Já o acampamento e a cozinha experimental são para crianças a partir de dois anos. “Uma dica extra: aproveite também para ensinar e conversar com seu filho sobre o coronavírus. Fale de maneira lúdica, mas bem prática e concreta, sobre os cuidados que precisamos ter e sobre a importâncias dos hábitos de higiene. É uma ótima oportunidade de treinar novas habilidades”, afirma Calmeto.

1 – Massa de modelar caseira Toda criança ama massinha de modelar e fazer o processo em casa para depois brincar é uma atividade bacana. Chame-a para preparar, deixe-a sujar, misturar e faça passo a passo para ela conseguir participar. Depois da massinha pronta, brinque à vontade! Faça bichinhos, modele, corte com tesoura sem ponta e use a criatividade.  Modo de preparo: em uma tigela, misture bem todos os ingredientes, 4 xícaras de farinha de trigo, 1 xícara de sal, 1 ¹/² xícara de água, 1 colher de chá de óleo. Separe em porções e coloque algumas gotas de corante para deixá-la colorida. Lembre-se de guardar em saco plástico para não endurecer.2 – Blocos de montar Esses são preferência para todas as crianças, basta a família direcionar para o interesse e nível de atenção da criança. É possível montar torres, castelos, carrinhos, pessoas e até aproveitar para fazer treino de imitação, onde você crie uma sequência e peça para seu filho fazer igual. Para crianças menores ou com dificuldades motoras, use peças maiores de encaixe.3 – Tinta caseira Você pode fazer a própria tinta caseira e pintar na folha, no azulejo do banheiro e deixar a criança se sujar à vontade. É diversão garantida e com uma estimulação sensorial.  Modo de preparo: misture 1 xícara de farinha de trigo, 1 xícara de sal, 1 xícara de água. Coloque a mistura em copos ou potes separados e pingue gotas de corante. Misture bem e pode usar com muita criatividade.

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É possível produzir a própria tinta para as crianças em casa, estimulando a área sensorial Foto: Instagram/@autonomiainstituto

4 – Circuito de obstáculos  Que tal um desafio psicomotor dentro da sua casa? Lembre-se que a decoração pode fazer parte da brincadeira do seu filho. Pegue almofadas, bambolês, cadeiras, puffs e outros objetos que você possa usar e monte um caminho com obstáculos. Use a criatividade e você terá muitos circuitos para diversão por aí. Lembre-se que essa atividade desenvolve a coordenação motora ampla, reconhecimento do corpo, controle do esquema corporal, lateralidade e muito mais. Modo de preparo: a criança precisará pisar nas almofadas com 2 pés juntos, passar por cima do puff, embaixo da cadeira, pular dentro dos bambolês e pisar com 1 pé só nas almofadas. 5 – Labirinto no corredor  Outra atividade psicomotora que as crianças amam. Pegue uma fita grossa e cole de uma ponta a outra na parede formando um labirinto no corredor. Depois, peça para seu filho passar pelo labirinto sem encostar na fita. Já percebeu que será divertido por muito tempo, não é? 6 – Acampamento Quem não ama um acampamento? As crianças com autismo ou Síndrome de Down também ficam animadas com essas atividades. Pegue um lençol, pendure em um canto da sala ou do quarto e faça uma cabana. Aproveite para acender uma lanterna, ler livros, fazer atividades, criar histórias, fazer lanches e muito mais dentro do acampamento. Mas um alerta importante: as crianças com autismo e Síndrome de Down às vezes demonstram dificuldades nas brincadeiras mais lúdicas de imaginação e de criatividade. Se esse for o caso do seu filho, você precisará mediar mais, ser mais criativo e saber que o tempo de concentração dele nessa atividade será menor. Então, deixe o acampamento montado e brinque um pouco a cada dia para ele se acostumar.

Quebra-cabeça ajuda no desenvolvimento da percepção visual, ordenação e raciocínio lógico Foto: Instagram/@autonomiainstituto

7 – Quebra-cabeça  Buscar atividades que desenvolvam o aprendizado, a ordenação, a percepção e a discriminação visual são sempre ótimas dicas. Comece com o quebra-cabeça de uma peça, vá adicionando peças. Use imagens conhecidas por ele como formas geométricas, letras, números, animais, frutas dentre outros. 8 – Atividades sensoriais Que tal aproveitar seu filho em casa para fazer atividades sensoriais com ele? A maioria das crianças com atrasos no desenvolvimento tem déficits nesse aspecto. Faça caixas com bolinhas de gel, sagu ou arroz colorido, feijão preto/branco e coloque dentro dela objetos que seu filho gosta. Pode usar animais, letras, números e frutas. Peça a ele para encontrar os objetos usando as mãos ou uma pinça. Outras opções de atividades sensoriais são slime, espuma de barbear, macarrão cozido colorido, bolha de sabão, pintura dentro do box do banheiro e muito mais. Outra opção é colocar líquidos com odores diferentes em potes separados e pedir para ele cheirar e descobrir o que é. Você pode fazer várias vezes durante a semana até ele decodificar e memorizar o cheiro com o objeto. 

Fazer uma caixa com objetos de cores, texturas e cheiros variados estimula a parte sensorial da cognição Foto: Instagram/@autonomiainstituto

9 – Cozinha divertida Cozinhar é sempre uma alegria e incluir as crianças nessa brincadeira é garantia de diversão. Muitas crianças com TEA e Síndrome de Down têm seletividade alimentar e déficits sensoriais e incluí-las no preparo de alimentos gostosos é uma ótima opção. Faça biscoitinhos, bolos, sanduíches, brigadeiro, pão de queijo, dentre muitas outras receitas fáceis que dão para fazer no microondas. Escreva a receita e vá fazendo o passo a passo com seu filho. Depois, monte uma mesa bonita, chame a família e compartilhem o resultado do esforço do seu filho.  10 – Brincadeiras manuais Essas sempre agradam e as crianças com atraso no desenvolvimento muitas vezes têm dificuldades em realizar. Pode fazer recorte e colagem com encartes de mercado ou farmácia, pintura com hastes flexíveis e tinta, colagem de bolinhas de papel crepom, brinquedos com material reciclável, dobraduras, mosaico com EVA. As atividades artísticas manuais ajudam a estimular as mãos através da coordenação motora e coordenação olho-mão. Além de estimular a parte sensorial e de criatividade também.

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