O clique surgiu quando o americano Russ Kick folheava uma versão em quadrinhos do clássico O Processo, de Franz Kafka. Apelidado de “arqueólogo da informação” pelo jornal New York Times por causa das antologias que já lançou, Kick logo vislumbrou outra. “Percebi a enorme quantidade de adaptações literárias em HQ que havia sido publicada nos últimos anos”, disse ele, que começou a reunir o que já havia sido feito e, ao encontrar lacunas, encomendou novas versões.
O resultado ultrapassou suas expectativas e, ao invés de montar apenas um volume, acabou organizando três - e é justamente o primeiro tomo de Cânone Gráfico - Clássicos da Literatura Universal em Quadrinhos que chega agora às livrarias brasileiras pela editora Boitempo, que inaugura seu selo de HQs, Barricada.
A Epopeia de Gilgamesh, o mais antigo poema épico do mundo (foi escrito em torno do ano 1000 a. C., na Babilônia), abre o primeiro tomo, que passa por clássicos gregos, utiliza textos da Bíblia, sobrevoa o Japão antigo (Murasaki Shikibu) e terras incas (Popol Vuh) até chegar a Dante, Shakespeare, Cervantes, Voltaire e terminar com As Ligações Perigosas, de Choderlos de Laclos, ou seja, até o final do século 18. No total, são 51 romances gráficos.
Os outros dois volumes que completam a série, avançando até a literatura contemporânea (A Piada Infinita, de David Foster Wallace, vai fechar o terceiro), serão lançados respectivamente em 2015 e 2016.
Kick conta que a escolha dos artistas foi tão criteriosa quanto à das obras clássicas. As adaptações foram feitas de maneira independente, com cada autor mantendo o próprio estilo. Com isso, ele conseguiu reunir ícones das artes gráficas atuais, como Will Eisner, Robert Crumb, Hunt Emerson, Molly Crabapple, Seymour Chwast e Peter Kuper. Um brasileiro também está presente no time - Kako, que vive em São Paulo, ficou responsável pela versão de Crime e Castigo, de Fiodor Dostoievski.
“Cada peça vale por si, mas juntas formam um vasto caleidoscópio de arte e literatura”, observa Kick. “Um arco-íris de abordagens visuais foi aplicado ao tesouro dos grandes escritos do mundo, e algo maravilhosamente novo ganhou forma.”
Caprichada, a edição brasileira só falha por não contar com algumas histórias (como Coiote e os Seixos, conto dos índios americanos), por questões de direitos autorais. Quando teve a ideia de organizar o Cânone Gráfico, Russ Kick acreditava que um volume seria suficiente para abraçar as principais produções. “À medida que eu contatava mais artistas, o número de obras crescia”, conta ele, que em pouco tempo chegou ao terceiro tomo.
Apesar de não desconhecer a existência de obras curtas produzidas no Egito e na Mesopotâmia, trabalhos como hinos, encantamentos, coletâneas de máximas, códigos de conduta e até histórias da criação, Kick fixou A Epopeia de Gilgamesh como a mais antiga obra literária do mundo. “Trata-se do poema épico - e, nesse sentido, uma obra narrativa ininterrupta - mais antigo do mundo”, justifica.
O organizador americano sabia o risco que estava correndo, uma vez que versões em quadrinhos geralmente são apontados como trabalho menor, secundário. Ele rebate dizendo que ação de cada história funcionaria melhor no cinema, por exemplo, mas são as ilustrações que sustentam o texto.
Há também a preocupação em recuperar a cultura de povos que terminaram extintos, como os maias, cujas histórias resistiram graças às versões orais e também as que foram traduzidas para o espanhol - dessa safra, foi adaptado o Livro Sagrado Quiché, de Popol Vuh.
Outras pérolas são as adaptações feitas por artistas do quilate de Robert Crumb, que comparece com sua visão de Diário Londrino, de James Boswell, e também de Will Eisner, que adaptou Dom Quixote. Sobre o trabalho de organização, Kick respondeu, por e-mail, as seguintes questões.
Você poderia falar sobre a tradição das adaptações literárias em histórias em quadrinhos?
Esta tradição data provavelmente dos primeiros anos do século 20. Os personagens de Alice no País das Maravilhas começaram a aparecer em tiras, revistas e livros em quadrinhos naquela época. De 1941 a 1971, havia os livros de quadrinhos da Classic Illustrated - cada edição adaptava um clássico da literatura. Foram 169 edições. Eles continuam sendo editados, e às vezes aparecem novas versões. Desde 2002, a Graphic Classics passou a publicar antologias resumidas (144 páginas) de literatura focalizando um autor ou um tema. Além disso, há muitas adaptações integrais feitas por vários artistas e editoras. Moby Dick, A Odisseia, e muitas tragédias de Shakespeare foram publicadas diversas vezes. Até este ano, foram adaptados todos os romances de Kafka e sua novela A Metamorfose. No entanto, ninguém ainda tinha publicado uma gigantesca coleção que cobrisse toda a história das adaptações literárias, então me dei conta de que era algo que precisava ser feito.
As obras em sua maioria são novas interpretações de autoria de talentos extremamente criativos. De que maneira você escolheu estes artistas e como decidiu fazer a seleção das obras que cada um adaptaria?
Comecei contactando todos os meus artistas favoritos - os mais famosos e os que não eram famosos (ainda). Depois, procurei artistas fantásticos vasculhando outras antologias, blogs, DeviantArt, Behance, onde quer que fosse possível. Em geral, quando entrava em contato com alguns artistas, enviava uma lista de obras que esperava ver adaptadas, mas acrescentava que estava aberto a obras que não estavam na lista. Em geral, eles escolhiam uma obra favorita da lista. Às vezes, preferi fazer algo fora dela. Ou ainda, contatava artistas com a sugestão para uma obra que se coadunava com seu estilo (foi assim que Edie Fake acabou adaptando as visões de Madre Teresa da sua autobiografia).
Há alguma obra que você gostaria de incluir no livro, mas que não foi possível? Por quê?
Na realidade, eu queria Em Busca do Tempo Perdido no livro. Há uma adaptação gráfica do romance, publicada originalmente na França, com uma tradução em inglês publicada nos Estados Unidos (trata-se de uma versão realizada por Stéphane Heuet, publicada no Brasil pela Zahar). Falei com a editora original francesa, mas a quantidade de dinheiro que ela queria estava tão acima do que a minha editora podia pagar que sequer considerei a possibilidade. Então, inclui o título na lista das obras que enviava aos artistas, mas nenhum deles o escolheu. Quem sabe no futuro!
Qual foi a adaptação mais trabalhosa? E qual a que mais o impressionou?
Não sei ao certo qual foi a mais trabalhosa para os artistas. Sempre que me enviavam a obra acabada, era como ganhar um presente de Natal. Todos eles fizeram um trabalho fantástico, e os que mais me impressionaram foram, entre outros, Lisístrata, História de Genji, O Apocalipse, Paraíso Perdido, O Livro Tibetano dos Mortos... E poderia continuar.
Por que incluiu vários livros de cunho religioso?
Parece que os livros sagrados de todas as principais religiões do mundo ultrapassaram as fronteiras do religioso e passaram a ser considerados clássicos da literatura, além de clássicos da religião. Todos são escritos maravilhosamente bem e frequentemente contam histórias interessantes ao mesmo tempo que transmitem sabedoria.
Como conseguiu convencer ícones como Will Eisner e Robert Crumb a participar do projeto?
Falei com o agente de Will Eisner (Denis Kitchen), e ele gentilmente permitiu que reeditássemos partes do Don Quixote. Contactei também a agente de Crumb, e eles acabaram permitindo que a gente reeditasse algumas de suas obras a um preço fantástico, acessível para nós. Todo mundo foi muito generoso.
O leitor brasileiro só vai lamentar a ausência de obras como Coyote e os Seixos e a Odisseia, por causa dos direitos autorais. O que pensa sobre isso?
A maioria das adaptações foi feita para o Cânone Gráfico. Isto significa que a editora original americana (Seven Stories Press) detém o direito de permitir que editoras não americanas as incluam ao fazer uma tradução do Cânone Gráfico. Mas algumas das adaptações são reedições de obras publicadas por outras editoras. Estas editoras disseram que consentiam que a Seven Stories usasse o material na edição americana, mas que as editoras não americanas não poderiam usá-lo. Foi uma situação desagradável, mas a aceitamos em um alguns casos. Brasileiro ilustra ‘Crime e Castigo’O designer gráfico brasileiro Kako também faz parte da coleção - é dele o traço de Crime e Castigo, de Dostoievski. “Decidi retratar o ato do assassinato pois é um ‘turning point’ do livro e graficamente poderia ser forte dentro do conjunto da antologia”, explica. “Meu interesse reside em nossos questionamentos diários sobre o que é certo e errado e nas reflexões pessoais que nos fazem decidir ir em frente ou nos resguardar.” CÂNONE GRÁFICOAutor: Russ KickTradução: Magda Lopes e Flávio AguiarEditora: Barricada (456 págs., R$ 118)
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