Pode ser estranho que a capa de O Abismo Vertiginoso, do físico italiano Carlo Rovelli, exiba uma frase elogiosa do escritor britânico Neil Gaiman. Talvez o que una as obras do cientista e do autor de fantasia seja, em síntese, uma postura que põe em xeque nossas certezas acerca da realidade. Rovelli já publicou no Brasil outras obras de divulgação científica que questionam nossas noções de tempo, espaço e existência, como Sete Breves Lições de Física, A Realidade Não É o que Parece e A Ordem do Tempo. Em seu novo livro, lançado pela editora Objetiva, ele se aprofunda em um dos temas mais fascinantes e mal compreendidos da ciência moderna, a física quântica.
O desconhecimento do público leigo acabou, ao longo das últimas décadas, por envolvê-la em um véu de misticismo, pseudociência e charlatanismo. Grassam curandeiros que dizem se aproveitar de “efeitos quânticos” para tratar os problemas alheios, mas são raros os que sabem o que é afinal a física quântica e quais são de fato seus efeitos. Em tempos de obscurantismo, negacionismo científico e ignorância, livros como o de Rovelli vêm em boa hora. A física quântica estuda fenômenos desconcertantemente pequenos, como o comportamento de elétrons orbitando o núcleo de um átomo. O movimento de objetos cotidianos como um trem é descrito satisfatoriamente pela mecânica clássica que herdamos de Newton, mas no início do século 20 os físicos perceberam que suas fórmulas não se aplicavam a escalas extremas, como as partículas fundamentais. É nesse ponto que O Abismo Vertiginoso se situa. Mais especificamente na ilha alemã de Helgoland, no Mar do Norte, mencionada por James Joyce em Ulisses e cujo nome significa “ilha sagrada”. Foi lá que Werner Heisenberg se refugiou para dar início ao que chamamos hoje de física quântica. À medida que a ciência foi conseguindo desvendar esse ambiente subatômico, algumas noções sobre a realidade que pareciam óbvias foram sendo postas em xeque. Por exemplo, um elétron não se movia em uma trajetória, como uma bolinha de gude muito pequena, mas se manifestava em determinadas órbitas do átomo e parecia “saltar” de uma para a outra sem de fato se deslocar entre os pontos, obedecendo regras probabilísticas, não trajetórias definidas. O desafio da física quântica vem sendo, nos últimos cem anos, compreender esses fenômenos. Embora a teoria seja incrivelmente precisa, capaz de fazer predições verificáveis com acurácia maior que qualquer outra, Rovelli alerta que ela nos força a deixar de lado alguns conceitos intuitivos que temos sobre o mundo em que vivemos. Até mesmo a palavra “quântica” vem de uma característica excêntrica da realidade. O físico alemão Max Planck notou que a energia (como, digamos, o calor de um forno) não aumenta assumindo todos os valores possíveis e intermediários entre um ponto e outro. Ela age “como se a energia se transferisse apenas em pacotes”, explica Rovelli, assumindo valores múltiplos de um mínimo. Não há quantidades infinitamente pequenas de energia. A realidade apresenta uma certa granularidade, ou seja, a energia assume valores discretos, específicos, quantizados, que não evoluem continuamente. Daí o “quântica”, e não de alguma propriedade mística envolvendo o poder da mente. A primeira parte de O Abismo Vertiginoso narra a evolução do estudo desses fenômenos diminutos, desfilando um elenco estrelado de vencedores do prêmio Nobel, como o dinamarquês Niels Bohr, o alemão Werner Heisenberg e o austríaco Erwin Schrödinger, entre vários outros. A segunda parte apresenta os conceitos mais inquietantes da física quântica, como a sobreposição e o emaranhamento, que a levaram a ser encarada com tamanho misticismo. Na terceira e última parte, Rovelli oferece algumas interpretações que ainda estão em debate e explica as bases de sua hipótese, formulada nos anos 1990, a Física Quântica Relacional.
Ela tenta eliminar alguns dos aparentes paradoxos da teoria quântica por meio de uma abordagem interpretativa que leva em conta a relação entre um observador e o sistema que ele descreve. Para ele, as propriedadesde um objeto só se manifestam de maneira relativa. Por exemplo, não faz sentido medir a velocidade de um avião sem estipular em relação a quê (ao solo, ao ar em movimento?). Da mesma forma, efeitos quânticos como a sobreposição e o emaranhamento de partículas dependeriam dessa relação com um ponto de referência (ou um observador) para ser mensurados.
No século 2, o sábio indiano Nagarjuna elaborou uma filosofia do vazio cuja tese central, muito resumidamente, é que não há nada que tenha existência em si, independentemente de outras coisas, mas tudo que existe o faz em relação a algo. Rovelli apresenta essa e diversas outras referências eruditas, dos cubistas à Tempestade de Shakespeare, para explicar como ele enxerga os dilemas propostos pela física quântica, como a ideia de que o observador altera os resultados de um experimento, ou de que um gato hipotético possa assumir dois estados simultâneos e estar vivo e morto ao mesmo tempo.
"A teoria dos quanta esclareceu as bases da química, o funcionamento dos átomos, dos sólidos, dos plasmas, a cor do céu, os neurônios de nosso cérebro, a dinâmica das estrelas, a origem das galáxias… uma infinidade de aspectos do mundo. É o fundamento das tecnologias mais recentes: dos computadores às centrais nucleares. Faz parte do cotidiano de engenheiros, astrofísicos, cosmólogos, químicos e biólogos. Rudimentos da teoria estão no currículo do ensino médio. Ela nunca falhou. É o coração pulsante da ciência atual. Apesar disso, continua a ser um mistério. Um pouco perturbador", escreve Rovello, que conduz o leitor com elegância pelos meandros da teoria mais sofisticada que a humanidade já concebeu, e que ainda nos assombra com seus mistérios insondáveis.
Leia abaixo a entrevista que Carlo Rovelli concedeu ao Estadão por e-mail:
O início do século 20 nos deu Einstein, Bohr, Heisenberg, Schödinger, que revolucionaram nossa compreensão da realidade. Hoje, parece não haver nomes individualmente tão marcantes, mas sim grupos de pesquisadores anônimos em universidades e laboratórios. Como o sr. vê isso? A diferença é só uma questão de perspectiva. No começo do século 20, Einstein, Bohr, Heisenberg e Schrödinger ainda não eram reconhecidos. Eles pareciam “pesquisadores anônimos em universidades e laboratórios”. Hoje é bem possível que alguns desses “pesquisadores anônimos” sejam celebrados no futuro.
Qual é o estado da arte da física teórica e quais são as descobertas mais recentes tão impactantes quanto essas que você narra em seu livro, feitas há um século? Há ideias e teorias provisórias, como a teoria quântica e a relatividade geral foram provisórias no começo. Ainda não sabemos quais se mostrarão corretas. De minha parte, espero que a Gravitação Quântica em Laços (Loop Quantum Gravity) acabe sendo a correta. Ela ainda não está confirmada, mas há uma mobilização para encontrar evidências que a suportem. A Gravitação Quântica em Laços prevê que o espaço é granular. Ela prevê que a geometria do espaçotempo possa estar em sobreposição quântica. Isso muda profundamente nossa visão de mundo.
A sua Física Quântica Relacional oferece explicações para fenômenos exuberantes, como o entrelaçamento de partículas, o gato de Schrödinger, o princípio da incerteza de Heisenberg e a noção de observador interferindo no experimento, explicações surpreendentemente simples e elegantes quando o sr. as descreve no livro. Elas parecem eliminar a maior parte dos paradoxos e mistério dos quanta. De fato. Mas isso não torna a teoria quântica menos esquisita. A mudança conceitual que ela requer é ainda considerável.
Quão bem estabelecida está a Física Quântica Relacional atualmente e quais são as maiores críticas a ela? Cientistas e filósofos ainda estão divididos a respeito de como devemos pensar sobre fenômenos quânticos. A Física Quântica Relacional foi concebida nos anos 1990. Por muito tempo, permaneceu uma visão minoritária. Na última década, especialmente nos últimos anos, vem recebendo mais atenção. Muitas pessoas acham-na atrativa. Mas eu definitivamente não diria que é a visão dominante. Ainda não há uma visão dominante.
Quão próximos estamos de unir as teorias quântica e relativística? É uma excelente pergunta, mas ninguém sabe a resposta. Talvez já o tenhamos feito: a Gravidade Quântica em Laços pode ser essa unificação. Mas também pode estar equivocada. Temos de esperar, refletir, experimentar e vamos descobrir.
O sr. acredita que chegaremos a um ponto em nosso conhecimento científico no qual não haverá mais questões novas a solucionar ou em que nossa capacidade de descobrir novas coisas estará estagnada? Não. Acho que o número de questões em aberto ainda é colossal. Há tanto que não sabemos sobre a realidade… Parece mais provável que a humanidade se destrua do que chegue ao limite de seu conhecimento.
A pandemia de covid-19 nos mostrou a importância da divulgação científica e da comunicação para interpretar a ciência para o público leigo. Mas ainda temos muito trabalho a fazer nessa área. Como o sr. acredita ser possível aprimorar a difusão da ciência para o público? Minha esperança era que a efetividade extraordinária que estamos vendo com as vacinas iria aumentar a confiança das pessoas no pensamento científico. Infelizmente, isso não aconteceu: muita gente ingênua se ilude com as bobeiras que inundam a internet. Mas não acho que isso tenha a ver com ciência. Tem a ver com política, com a infelicidade das pessoas, desconfiança na sociedade, sentimentos de que essa sociedade não nos representa. A ciência acaba sendo encurralada nesse fogo cruzado.
Há um abismo crescente entre ciências exatas e humanas, mas seu livro traz o instigante exemplo de Ernst Mach, que foi uma ponte da física com filosofia, política e literatura. Como podemos aproximar esses mundos hoje em dia? Sendo mais inteligentes. E vendo que não há contradições verdadeiras se escutarmos com mais atenção uns aos outros.
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