As lives de música ocorrem desde os primeiros dias da quarentena. Algumas são mais amadoras, no estilo uma câmera e um violão. Outras, mais profissionais, reúnem banda completa, cenários e uma equipe de produção. Mas a Casa de Francisca, espaço musical localizado no prédio tombado Palacete Teresa, de 1910, encravado no centro histórico de São Paulo, pretende ir além. Com uma apresentação do compositor Guinga hoje, às 21h ,o espaço inaugura o projeto Até o Fim, Cantar, com shows sem público que receberão tratamento cinematográfico para transmissão via internet, às sextas e aos sábados. A diretora Laís Bodanzky, de filmes como Bicho de Sete Cabeças (2001) e Como Nossos Pais (2017), e atual presidente da Spcine, será a responsável pela curadoria.
A iniciativa é uma retomada parcial da principal vocação da casa – os shows musicais que eram realizados quase que diariamente no charmoso salão do local. Desde que as atividades culturais foram paralisadas por conta da pandemia do novo coronavírus, a Casa de Francisca promoveu apenas uma live, no dia 20 de março, com o músico Kiko Dinucci, com o objetivo de conscientizar as pessoas a ficarem em casa. No mais, implementou um delivery que entrega os principais pratos servidos por lá.
“A gente não pretende voltar com a programação normal tão cedo, mesmo que a Prefeitura flexibilize a abertura das casas de shows. Decidimos, então, nos unir com os artistas pensando em um projeto que possa gerar recursos para eles e técnicos, e nos ajudar a sobreviver”, conta Rubens Amatto, fundador da Casa de Francisca. Além de Guinga, nomes como Chico César, Tulipa Ruiz, Mônica Salmaso, Lirinha, Mestrinho, Renato Braz, Arrigo Barnabé, Metá Metá e Siba já estão confirmados, ainda sem data de apresentação definida.
Para alcançar esse objetivo, as lives terão cobrança de ingresso nos valores de R$ 26, R$ 53, R$ 80 e R$ 260 – a decisão sobre o quanto pagar caberá ao espectador e todos terão direito ao mesmo tipo de transmissão. Para quem não pode pagar, a casa também dará acesso à plataforma – em um primeiro momento, sem número limitado –, mas só com inscrições antecipadas.
Para essa primeira apresentação, até a última quinta-feira, 70% das adesões eram para ingressos pagos. Na divisão do montante arrecadado, os artistas terão a prioridade para receber o cachê. Depois, serão pagos a produção e a direção, e outra parte ficará para a casa.
Qualidade. A ideia de dar um tratamento final mais bem acabado às apresentações, com uso de câmeras em alta definição e mixagem de som, vem de um certo incômodo de Amatto, que também é formado em cinema, ao assistir às lives. “Geralmente, elas são muito convencionais, com qualidade técnica ruim, sem capricho. Em muitos casos, o que salva é a força artística de quem está se apresentando”, diz. Além disso, a Casa de Francisca vai aproveitar o momento para colocar em prática um desejo antigo: transmitir os shows para outras cidades e outros países. Um link com venda de ingressos online para o público japonês já está disponível e agentes já trabalham a divulgação nos Estados Unidos e na Europa.
A diretora Laís Bodanzky, que terá a missão de a cada apresentação escolher um novo diretor, se mostra empolgada em assumir o posto em um momento em que o mundo se torna mais audiovisual do que nunca. “Eu disse sim na hora. A minha relação com a casa e com a música me traz essa grande oportunidade de unir as duas de uma forma inusitada. É um desafio muito interessante”, diz ela, que se confessa fã do espaço e do jeito intimista como artistas e público se encontram nele. “A música e o cinema caminham juntos. A trilha veste um filme, é a alma dele”, diz ela, que cita Chega de Saudade como seu trabalho que mais flerta com a projeto que abraçará na Casa de Francisca.
“A proposta tem não só a possibilidade da linguagem audiovisual em cima da música, mas também brinca com o improviso, por ser ao vivo, mas nem por isso não será organizado e pré-programado para que cada cineasta empreste sua visão para aquele artista e para o espaço. Serão olhares específicos sobre como assistir àquele show. Cada um vai escolher o que olhar e como olhar”, diz Laís, que pretende chamar não só cineastas famosos, mas dar oportunidade para quem não é tão conhecido e jovens talentos. Entre os famosos, nomes como Petra Costa e Fernando Meirelles estão no radar da casa.
Para a estreia, Laís convidou três diretoras de fotografia – Thais Taverna, Giovanna Pezzo e Carol Quintanilha – ligadas ao Coletivo DAFB (Coletivo das Diretoras de Fotografia do Brasil), que tem como propósito valorizar a presença de mulheres e transgêneros que trabalham em produções cinematográficas. Elas assumirão, nessa e nas próximas apresentações, as câmeras que captarão o que acontecerá na Casa. Thais dá pistas sobre como conduzirá a linguagem no ao vivo de Guinga. “A música dele é bem minimalista. Estaremos com a câmera na mão para captar justamente isso e tentar levar ao público para perto dele, algo que também sempre foi a proposta do espaço.”
A estreia. O compositor e violonista Guinga, escolhido pela Casa de Francisca para abrir o projeto, é um velho conhecido do local. Já esteve por várias vezes no pequeno palco que dá para as mesinhas que ficam logo à frente, bem perto do público. Um pouco mais afastadas estão as características arquibancadas que marcam a arquitetura da casa. Ao lado de nomes como Arrigo Barnabé, Mônica Salmaso, Nelson Ayres, entre outros, que, geralmente, não estão na programação de casas maiores, revela o cuidado de Amatto na escolha dos artistas que passam pelo salão do palacete que abriga pouco mais de cem pessoas por apresentação. Mesmo assim, o músico se mostra apreensivo para retomar seu ofício depois de 120 dias sem se apresentar.
“Estou torcendo para que eu faça direito, porque tocar sozinho não é fácil. Nunca sabemos quantas pessoas estarão do outro lado. Apesar que isso não importa para mim, vou tocar para quem quiser ouvir, ser o mais honesto possível. Quando se vibra na mesma frequência, não tem distância. Acaba acontecendo a sinergia”, diz Guinga, que, humildemente, se esquece que tem seu nome entre aos maiores músicos e compositores do País, com músicas gravadas por Clara Nunes, Elis Regina, Leila Pinheiro, Esperanza Spaldi e Michel Legrand, e parcerias assinadas com Chico Buarque, Aldir Blanc e Paulo César Pinheiro.
Sobre o tratamento cinematográfico que a live terá, Guinga diz que Laís Bodanzky é “craque” e que confia no trabalho da diretora. Preocupado mesmo ele está com o repertório, que, de certa forma, vai comemorar seus 70 anos de idade, completados em junho. “Vai ser um apanhado de canções que posso apresentar sozinho no palco. Eu já compus tanto na minha vida que até esqueço.”
Enquanto espera tudo voltar ao normal, Guinga dá aulas de música, ou melhor, sobre sua música. Os alunos, que estão mundo afora, em países como Estados Unidos, Bulgária, Itália e Argentina (além do Brasil), querem saber como tocá-las corretamente. Um orgulho para ele. “Para um cara como eu, que veio do nada, de uma família pobre, criado em Madureira (subúrbio carioca). Lutei a vida toda para botar a cabeça para fora do poço. É uma felicidade ver esse interesse”, comemora.
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