Nos últimos tempos, com a voltagem ideológica cada vez mais incandescente, termos como “fascismo” ou “fascista” degeneraram em desaforos ocos como canoas. Pelo andar da carruagem, daqui a pouco corresponderão a insultos como “bobagem” e “bobinho”, tal sua flacidez semântica. Ainda bem que um novo romance italiano ajuda a repor os pingos nos is, e a lembrar que conceitos não se reduzem a impropérios: precisam de fundamento lógico. Por incrível que pareça, “fascista” não é apenas quem discorda de nós. A etimologia dá uma mãozinha: “fascismo” deriva do latim “fasces”, um feixe de varas atadas em redor de um machado, símbolo do poder na Roma Antiga. Mussolini reciclou-o para realçar que “a união faz a força”: uma única haste é facilmente quebrada, enquanto o feixe é difícil de partir.
Até aí tudo bem, mas já em 1944 George Orwell resmungava que “a palavra ‘fascismo’ se tornara quase inteiramente sem sentido”. Hoje, então, o termo é tão versátil quanto “coisa”. Donald Trump, por exemplo, apesar do seu fundamentalismo econômico ultraliberal, não passa de um “fascistão”. E temos o “islamofascismo”. Outro dia, como o governo dos Países Baixos não permitiu que dois ministros turcos fizessem campanha em território holandês em favor do aumento dos poderes de Recep Erdogan, e o presidente da Turquia vociferou que o regime de Amsterdã é... fascista. Estamos em pleno reduto da “lei de Godwin” (do advogado americano Mike Godwin): “À medida que uma discussão online se prolonga, a probabilidade de surgir uma comparação com Hitler se aproxima dos 100 por cento.” Qualquer pessoa que já pôs os pezinhos em rede social está careca de saber disso.
Como o argumento “ad Hitlerum” é uma falência conceitual, e não identificar corretamente o adversário significa meio caminho andado para cair do cavalo, convém recordar que o fascismo tem características específicas. Um bom guia (entre outros) é Michael Mann, em Fascists, que sintetiza: “É a busca de um estatismo nacionalista transcendente e purificador, através do paramilitarismo, do partido único, do culto da personalidade e de um movimento de massas multiclasses”. Ora, nem todos os regimes autoritários são de direita, e nem todos os regimes autoritários de direita são fascistas. Devagar com o andor. Embora Jurgen Habermas tenha falado num “fascismo de esquerda”, e durante a ruptura sino-soviética Moscou e Pequim se acusassem mutuamente de “fascistas”, só no limite – quando o Estado se entranha em todos os poros do cotidiano – podemos ter um totalitarismo de esquerda (comunismo) e outro de direita (nazismo).
M, O Filho do Século, romance do italiano Antonio Scurati, talvez venha a pôr ordem na casa – ou a bagunçar de vez o coreto. É um projeto literário ciclópico: uma trilogia sobre Benito Mussolini, do qual só o primeiro volume, agora lançado, tem 812 páginas. Na Itália, o livro vendeu que nem picolé na praia e ganhou o prêmio nacional mais prestigioso, o Strega. Vai virar série de TV da Wildside, que produziu para a HBO a versão televisiva de A Amiga Genial, de Elena Ferrante. Na recente Feira do Livro de Frankfurt, editores do mundo inteiro se estapeavam pelos respectivos direitos autorais.
Para Scurati, “na imaginação italiana Mussolini continua uma espécie de totem, uma figura carismática, uma espécie de pai nacional perverso, que reprimimos. Meu livro virou essa repressão do avesso.” Estava na cara: o sucesso do romance gerou polêmica. Os favoráveis alegam que a obra recordou os males do fascismo, especialmente aos millennials, cuja memória remonta ao café da manhã de hoje. Os desfavoráveis acham que o romance vai branquear seu protagonista, confundindo alhos com bugalhos.
Na Itália, berço do fascismo, Mussolini nunca chegou a assumir o estigma de Hitler na Alemanha – o da quintessência do mal. Como observou Primo Levi, os italianos podem dizer: “Ao contrário dos nazistas, não fomos os arquitetos do Holocausto.” Em certos setores, a estabilidade social dos 20 anos de fascismo é vista com saudosismo. Matteo Salvini, ministro italiano do Interior, às vezes cita “il Duce”. Recentemente, uma comédia negra intitulada Voltei bombou na Itália, retratando Mussolini de volta à vida e arrasando no YouTube (uma adaptação do filme alemão Ele Está de Volta, no qual Hitler reaparece hoje em dia). Mais: a vila de Mussolini, perto de Rimini, virou um cenário popular para casamentos, e seu túmulo, em Predappio, atrai um cortejo constante de visitantes.
Ao romancear ditadores históricos, Scurati não descobriu a pólvora, claro. Basta citar, entre outros, Autobiografia do General Franco, de Manuel Vásquez Montalban, ou O Fantasma de Hitler, de Norman Mailer. Sem falar nos arquétipos dos caudilhos delineados pelo realismo fantástico latino-americano, como Eu, o Supremo, de Roa Bastos, ou O Outono do Patriarca, de Gabriel Garcia Marquez.
Mas a obra de Scurati – um antifascista militante, que ensina Escrita Criativa na Universidade de Milão – traz novidades, para o bem ou para o mal. Conta a história de Mussolini sem nenhum coador político ou ideológico, e borra o limiar entre ficção e história (quase mimetizando a historiografia pós-moderna). São capítulos breves e fervilhantes de dados, intercalados de telegramas históricos, notícias de jornal, cartas e relatórios policiais. O efeito é de colagem ou mosaico, e lembra a trilogia USA, de John dos Passos. O foco narrativo é o narrador onisciente, destacando a perspectiva fascista.
Numa nota introdutória, Scurati dá uma de João sem braço: “Fatos e personagens deste romance documental não são frutos da imaginação do autor. Cada acontecimento, personagem, diálogo ou discurso aqui narrado é historicamente documento e/ou fidedignamente testemunhado por mais de uma fonte.”
Mussolini, ao contrário da caricatura que Chaplin fez dele em O Grande Ditador, não era nenhum bocó. Falava cinco línguas, leu Hegel e Nietzsche e, enquanto diretor do Avanti! (jornal do Partido Socialista, do qual foi um membro proeminente), era idolatrado pelos leitores, elevando a tiragem da publicação a números inéditos. Mais tarde, seduziu para o movimento fascista intelectuais e artistas como o filósofo Giovani Gentile, o maestro Toscanini, os poetas Felipo Marinetti (cujo Manifesto Futurista foi xodó dos Modernistas brasileiros) e Giuseppe Ungaretti, e o dramaturgo (e Nobel) Luigi Pirandello.
Verdade que o romance abre com uma cena histórico-burlesca: a fundação – em 23 de março de 1919, na piazza San Sepolcro, em Milão – do Movimento Fascista (“Fasci di Combattimento”). O evento foi tão conspícuo que o principal jornal da Itália, o Corriere della Sera, lhe dedicou míseras dez linhas – o mesmo espaço concedido ao furto de 64 caixas de sabão de uma armazém milanês, na mesma noite. Porém, três anos depois aqueles gatos-pingados mixurucos tomariam o poder na Itália, e o conservariam com punho de ferro por duas décadas.
A passagem mais memorável do livro é a Marcha sobre Roma, o golpe de Estado fascista em 28 de outubro de 1922, que marca o fim da democracia multipartidária e a entronização do Partido Nacional Fascista de Benito Mussolini, então com 39 anos. Como costuma acontecer, por um triz (e graças a tibieza do rei Vitor Emanuel III), a vaca não foi para o brejo para os golpistas. Dick Washburn, embaixador americano em Roma, anotou em seu diário: “Estamos nos divertindo muito, assistindo a uma bela revolução de jovens. Nenhum perigo, bastante cor e entusiasmo.” E o representante do Vaticano, monsenhor Francesco Duca: “Desapareceu o sistema semi-socialista no qual o país penou no passado. Claro, houve uma revolução, mas foi uma revolução tipicamente italiana, um prato de espaguete.” Maria Antonieta fez escola.
Para quem gosta de história pura e dura, M é caviar. Mas, enquanto narrativa literária, ao apostar tudo na matriz documental, o romance se priva de recursos ficcionais – como o monólogo interior. E, assim, compromete a sempre desejável conexão emocional leitor/personagens. Esse é o eventual pecado de Scurati, e não cutucar um vespeiro ou exumar um tabu. Convenhamos: dificilmente a ignorância será solução para alguma coisa. Até porque, nos países democráticos Mein Kampf está disponível na internet – facinho, facinho. A vulnerabilidade da democracia é o preço paradoxal que ela paga pela sua incomparável força.
M, O FILHO DO SÉCULO AUTOR: ANTONIO SCURATI TRADUÇÃO: MARCELLO LINO EDITORA: INTRÍNSECA 816 PÁGINAS R$ 79,90*PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)
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