A origem do Universo é uma das questões mais intrigantes da ciência. Teria ele existido desde sempre ou começado com o Big Bang? Seria ele finito ou infinito? É para tentar responder a essas indagações que o cosmólogo brasileiro Mario Novello publica O Universo Inacabado, livro em que cristaliza seu Manifesto Cósmico e explica a visão da cosmologia moderna a respeito da origem e evolução de tudo o que existe.
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O filósofo italiano Giordano Bruno (1548-1600) morreu na fogueira por abordar esse tema. Em sua obra Sobre o Infinito, o Universo e os Mundos, escrito em 1584, Bruno defende a infinitude do Universo, que não era aceita pela Igreja: “Não são os sentidos que percebem o infinito; não é pelos sentidos que chegamos a esta conclusão, porque o infinito não pode ser objeto dos sentidos.” Já o físico e divulgador científico britânico Stephen Hawking (1942-2018), com quatro séculos de vantagem, enviou para publicação, dez dias antes de sua morte, um artigo em que defende a finitude do Universo e a criação de multiversos pelo Big Bang. O texto foi assinado com o físico belga Thomas Hertog, que explica: “As leis que testamos nos nossos laboratórios não existiram sempre”.
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Novello não concorda com a teoria do Big Bang, por enquanto a mais aceita na física, mas compartilha da opinião de Hertog e Hawking de que as leis naturais não são perenes. “Aceitar que as leis da física sejam eternas e imutáveis, determinadas por um decálogo cósmico, é ter uma visão a-histórica dos processos no universo”, escreve ele, fazendo uma crítica ácida quanto ao que considera ser um conservadorismo – e até certo dogmatismo – por parte dos físicos. “Não deveríamos substituir antigos sacerdotes por novos. Não deveríamos trocar sacerdotes por cientistas para exercer essa função.”
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Para Novello, o grande problema do Big Bang é que ele requer uma singularidade, o que significa que, no instante inicial, quando toda a matéria estaria concentrada em um ponto, a física supõe valores infinitos para variáveis como a densidade. Os modelos cosmológicos que Novello desenvolveu no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas desde 1979 não preveem essa singularidade, mas sim um cenário de “bouncing”, um estágio anterior à atual fase de expansão, em que o Universo estaria em colapso. Portanto, as normas que operam a natureza ainda estão em formação e evoluem com o tempo de acordo com o estágio do cosmos.
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“Entender a cosmologia como uma física extragaláctica (isto é, uma extensão ilimitada do que observamos na Terra e vizinhanças) é uma redução antropomórfica enorme”, afirma o cosmólogo ao Aliás em entrevista por e-mail. “Há alguns séculos, afirmava-se que ‘Terra é o centro do mundo’. Essa identificação da extensão das leis terrestres ao cosmos é uma nova versão dessa atitude pretensiosa.”
Um dos exemplos de como as leis naturais se modificam com o Universo é o predomínio da matéria sobre a antimatéria em quantidade, o que contraria todos os experimentos realizados em laboratórios. Se as duas se aniquilam mutuamente, “por que existe excesso de matéria sobre antimatéria?”, indaga Novello, explicando que o físico soviético Andrei Sakharov propôs cenários onde essa explicação advém do fato de que o Universo seria “um processo dinâmico”, não estático.
Para o brasileiro, a ampla aceitação do Big Bang entre os cientistas se deve pelo fato de que essa teoria não ataca a “paz racional” e não necessariamente exclui a ideia de um Deus criador, o que, para ele, é cômodo. No entanto, a cosmologia, em sua opinião, existe justamente para refundar a física e desestabilizar baluartes da ciência para que eles não se transformem em dogmas.
As pontes entre humanas e exatas parecem ruir em O Universo Inacabado, uma vez que o cosmólogo acredita que Marx e Engels, quando disseram que toda ciência é histórica, não se referiam apenas às humanidades. Na física, a noção de que as leis naturais evoluem com o Universo é necessária para que se compreenda sua origem, de acordo com Novello, mas os cientistas seguem presos à ideia de que os fenômenos verificados na Terra podem ser extrapolados para todo o cosmos. “A introdução da historicidade na compreensão dos fenômenos naturais”, segundo ele, é uma análise que “pode ser empreendida sem que tenhamos que enfrentar o fantasma da teleologia”, ou seja, sem que haja uma força superior guiando a evolução do Universo. “Por ter um status diferente dos mitos antigos (aqui, não se trata de uma crença, mas de conhecimento entendido como verdadeiro, pois científico), cada modelo cosmológico torna os demais falsos e inaceitáveis”, escreve ele.
Embora trate de um tema árido e que demanda certo conhecimento prévio, o cosmólogo demonstra erudição e traduz suas ideias utilizando-se de filósofos como o supracitado Giordano Bruno, além de Nietzsche, Kierkegaard e Thomas More. Para empreender sua investigação acerca da origem do Universo, embarcam na jornada de Novello físicos como Paul Dirac e Albert Einstein, matemáticos como Georg Cantor e escritores como Albert Camus e Italo Calvino.
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