Os últimos 20 anos de carreira do pintor paulistano Rodrigo Andrade foram marcados pela busca obsessiva de uma paisagem que, ancorada na história, se libertou das amarras da reprodução para abordar o gênero de forma inaudita, recorrendo não só à tradição pictórica, mas ao cinema e, especialmente, à fotografia. Ex-integrante do grupo Casa 7, cujo advento coincidiu com a revalorização da pintura nos anos 1980 e a emergência da onda neoexpressionista no mundo, Rodrigo Andrade, aos 60 anos, faz um balanço de sua vasta produção.
O número impressiona: algo em torno de 2 mil pinturas em 40 anos de carreira, 100 delas agora expostas em duas mostras simultâneas: uma na Galeria Almeida e Dale, com 80 telas das duas últimas décadas, e outra com duas dezenas de pinturas recentes, na Galeria Millan.
Ambas as exposições, abertas na semana passada, têm a paisagem como foco. O curador Lorenzo Mammì, que acompanha seu trabalho há décadas, organizou duas mostras que se complementam. Na Almeida & Dale estão as telas (de 2001 ao presente) do ponto de virada da carreira de Andrade, que reincorporou a linguagem figurativa e reintroduziu, segundo o curador, o espaço perspectivo ausente nos tempos da Casa 7 (um cruzamento híbrido do expressionismo abstrato americano com o informalismo europeu, de acordo com Mammì).
A Bienal de São Paulo de 2010 revelou para o público e os críticos um pintor que, deslumbrado com a fotografia, levou para a mostra uma série de paisagens noturnas. Não se tratava de simples apropriação de linguagem, mas de realizar na tela, “de maneira engenhosa”, segundo Mammì, o desejo de Gursky e Struth, entre outros fotógrafos, de fazer pintura com fotos – e a imagem fotográfica, com sua “planaridade e imaterialidade”, se prestou bem à reinvenção da paisagem por Rodrigo Andrade
Em frente a uma tela de um preto cerrado, que evoca uma paisagem noturna de Delft, na Galeria Almeida & Dale, Andrade diz que sua relação com a fotografia não é nem mais nem menos importante que seu apreço à história da pintura. A cena noturna em Delft (2012) pode remeter o observador ao embate entre luz e trevas de Vermeer, mas sinaliza também uma aproximação com o universo do cineasta húngaro Béla Tarr, especialmente Danação (1987) – o pintor aponta ainda outro filme do diretor que o marcou, As Harmonias de Werckmeister (2000).
De todo modo, Andrade esclarece que não é um citacionista. “Faço versões contemporâneas de pintores como Cranach e Corot e outros, da mesma forma que Picasso fez releituras de Le Déjeuner Sur l’Herbe de Manet”, resume, enquanto caminha na última sala da Almeida & Dale, repleta de recriações de telas conhecidas (entre elas Caçadores no Inverno de Bruegel, um bosque do francês Courbet e um pântano do holandês Ruisdael).
O que primeiro chama a atenção do espectador é que esse espaço não é bidimensional nem sugere uma tridimensionalidade ilusionista: os objetos, como observa o curador, “adquirem um estatuto ambíguo”. Ou seja, são as duas coisas, por força da espessura da tinta e do uso da técnica do estêncil, que também se nota nas paisagens recentes expostas na Galeria Millan.
“A profundidade sempre me encantou, esse desejo de criar um espaço que é propositalmente indefinido e me levou tanto a abordar a paisagem urbana como a rural.” No último caso, destacam-se as telas que retratam o Morro da Garça, em Minas, onde morava sua mãe – local que ficou conhecido por causa de Guimarães Rosa. Várias telas feitas nos últimos dois anos (2020 e 2021) foram produzidas lá, mas as pinturas em “plein air” muitas vezes sofrem transformações, pois Andrade tem o hábito de reconstituir paisagens ao ar livre em estúdio – e há exemplos dessa recriação nas telas recentes exibidas na Galeria Millan.
“É o desejo de um pensamento pictórico problematizado, que não se contenta com o desejo de pintar o que se vê”, justifica o pintor. “Trata-se de experiência, não apenas de percepção, como assinala Lorenzo”, diz ele. E uma pintura que retrata um cemitério, na Almeida & Dale, traduz esse sentimento conflitante de usar a paisagem como tradução dessa experiência crepuscular. “Minha pintura está ligada com o mundo dos mortos, de Cézanne a Matisse, de Corot a Iberê”, conclui.
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