'12 Anos de Escravidão' revê história real de homem livre que é feito escravo

Indicado para nove prêmios no Oscar 2014, filme não poupa espectador de detalhes na longa trajetória de sofrimento

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio

Solomon Northup era um cidadão nova-iorquino, violinista, homem culto, casado e com filhos. Numa viagem de negócios a Washington, o drogaram e, quando acordou, viu-se transformado em escravo. Vendido para as plantações do Sul do país, penou durante muito tempo até conseguir ser libertado. De volta à sua casa e família, escreveu um livro importante para a campanha pela abolição da escravatura nos EUA. Esse texto pungente está na origem de 12 Anos de Escravidão, dirigido pelo britânico Steve McQueen e indicado para nove categorias do Oscar. É favorito aos troféus principais, entre eles o de filme, direção e ator para seu magnífico intérprete, o também britânico Chiwetel Ejiofor. A história cobre os 12 anos de sofrimento de Solomon, do sequestro em 1841, ao resgate em 1853.

 

 

    É curioso que, pelo segundo ano consecutivo, a Academia ponha em relevo o tema da escravidão. Ano passado com Lincoln, de Steven Spielberg, que concentra sua biografia do presidente norte-americano em sua luta pela abolição e com Django Livre, de Quentin Tarantino, numa visão pop e libertária daquele processo. Agora, com um trabalho dirigido por um cineasta negro e britânico, homônimo de um dos atores mais conhecidos da história de Hollywood. Mais: alguns críticos têm classificado 12 Anos como o “filme definitivo” sobre a escravidão nos EUA. Não contemporiza usando como pretexto pretensas relações amistosas entre os donos de fazendas e suas “propriedades”, que incluíam os negros cativos. Por exemplo, quando lhe perguntam por que maltrata tanto seus escravos, que afinal o serviam e haviam custado caro, o fazendeiro Edwin Epps (Michael Fassbender) resume sua visão de mundo numa frase: “Um proprietário faz o que quiser com a sua propriedade”. Essa liberalidade com que o dono dispõe de suas “propriedades” é ilustrada por muitas cenas de violência, torturas e humilhações. A intenção deliberada do diretor é que nenhum detalhe dos aspectos mais atrozes da escravidão seja poupado ao espectador. Não se pode dizer, por outro lado, que se trata de crueldade mostrada de maneira inútil, gratuita. Ou se faz um filme honesto sobre a escravidão ou se cala sobre o assunto. A opção de McQueen foi a de beber até a última gota desse cálice. Não deixa muito espaço para qualquer romantismo, e trata a escravidão como ela deve ser tratada, como a mais execrável instituição jamais inventada pela humanidade. De certa forma, Solomon experimenta, na realidade, uma situação já descrita pela escritora abolicionista Harriet Beecher Stowe (1811-96) em seu romance A Cabana do Pai Tomás (1852). Forçado pela situação econômica, o bom patrão branco vende seus escravos para o patrão mau. E nenhum deles poderia ser pior do que Epps, bem interpretado por Fassbender, ator que já havia trabalhado sob a batuta de McQueen em Fome e Shame. Na história, Epps representa a epítome da maldade. Mas, para sua sorte, Solomon encontra gente diferente em sua sofrida trajetória. Em especial o personagem de Brad Pitt, em pequeno papel. Dirigido com intensidade e convicção, 12 Anos de Escravidão parece às vezes excessivamente acadêmico. Por outro lado, convoca a indignação da plateia por uma circunstância adicional: Solomon não era um escravo típico, mas um homem culto, livre e, portanto, vítima de grande injustiça. Essa situação de fato, real e verdadeira, pode tirar um pouco do foco sobre a maior injustiça de todas – a escravidão em si, pura e simples, execrável quando aplicada a homens livres ou não, cultos ou ignorantes. Verdade que Solomon Northup teve a experiência dos dois lados. Cidadão nascido livre, viu-se privado de sua liberdade. Em condições abomináveis, preservou a dignidade e não deixou de lutar. Liberto, escreveu o livro, deu palestras sobre sua experiência e se engajou na luta abolicionista. Nascido em 1808, não se sabe exatamente quando morreu. Seu rastro foi perdido em 1857. Sumiu, mas o livro ficou. E seu exemplo.

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