Na abertura do Festival de Cannes deste ano, a presidente Cate Blanchett e seu júri deram uma entrevista coletiva. Não seria intimidador ter de avaliar um filme de um mito como Jean-Luc Godard, que ainda por cima nunca havia recebido a Palma de Ouro? Madame la Présidente saiu-se bem, e até fez ironia. “Ninguém vence a priori e se o filme (dele) for bom...”.
No final, Godard, com seu Le Livre d’Image, rebatizado como Imagem e Palavra no Brasil, venceu uma Palma especial. Pelo menos não foi esquecido como o excepcional Nuri Bilge Ceylan, de A Árvore dos Frutos Selvagens. Uma Palma, mesmo especial, o pôster do festival – uma imagem de O Demônio das Onze Horas, aquele beijo de Jean-Paul Belmondo e Anna Karina, cada um na direção de um carro.
Godard, aos 87 anos, é o último de sua geração. Last man standing. O mais impressionante é que, quase nonagenário, ele não deixa de provocar, como um jovem. À maneira de Filme Socialismo e Adeus à Linguagem, Imagem e Palavra utiliza imagens pré-existentes numa típica colagem godardiana.
Johnny Guitar, A Morte num Beijo, Interlúdio, Um Corpo Que Cai, Marlene (Dietrich, existe outra?) no trem de Josef Von Sternberg. Essas imagens ‘clássicas’ são montadas com outras que refletem a violência do mundo – guerras, execuções – e divididas em capítulos. O próprio Godard, com sua trêmula voz inconfundível, é o narrador, ressignificando esses fragmentos de audiovisual.
Logo de cara, Godard diz que vai pensar com as mãos, talvez se referindo ao ato de montagem. E, depois, ele fala do seu desejo de fazer ‘remakes’, que podem muito bem ser os ressignificados que atribui a cenas que fazem parte do nosso imaginário de cinéfilos. Sempre inovador, em Cannes Godard não deu a tradicional entrevista do diretor, após a exibição de seu filme. Quer dizer, em termos.
Ele não foi, recusando-se a fazer a tradicional montée des marches, mas quem quis pôde falar com ele por meio da imagem no celular na mão de seu produtor. Só Godard para criar, no maior evento de cinema do mundo – ainda é, apesar do crescimento de Toronto –, esses momentos de intimidade para discutir uma obra que se pretende crítica e reflexiva.
Godard reflete sobre o estado do mundo em 2018. Nesses cinco meses decorridos desde a estreia mundial de Imagem e Palavra, o autor talvez tivesse de mudar – os comentários e as imagens – para dar conta de novas brutalidades sem fim. Explode uma bomba (atômica) e Godard, solene, adverte – “A guerra está aqui.”
O foco de sua colagem é essa ideia de que as ações dos cidadãos são inseparáveis das ações de seus governos. O advento da direita, em todo o mundo, talvez não esteja sendo uma imposição de poucos, nessa nova geopolítica planetária. As massas estão alegremente se submetendo, mais umas vez, ao pensamento totalitário. A síntese desse pensamento é a imagem de uma dança, num velho filme, que Marcel Ophüls já havia mostrado em seu documentário A Tristeza e Piedade, nos anos 1970. A alienação da burguesia não tem limites, adverte Godard.
Seu filme nasceu na contramão de um pensamento muito difundido no Ocidente – no seu terço final, Imagem e Palavra, fixando-se no Oriente Médio, rejeita a demonização do mundo árabe, em especial dos palestinos. Quase nonagenário – nasceu em dezembro de 1930 – Godard nos convida a pensar no apocalipse iminente do humanismo.
42ª Mostra Internacional de Cinema - Imagem e Palavra, de Jean-Luc Godard (2018)
26/10 - Cinearte Petrobras, Sala 1 - 18h
31/10 - Reserva Cultural, Sala 1 - 18h10
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