Sintonizado com a realidade brasileira depois de dois filmes que produziu sobre problemas sociais brasileiros (o thriller Pacificado, ganhador da Concha de Ouro de San Sebastián em 2019, e o documentário O Território), o cineasta nova-iorquino Darren Aronofsky avança na corrida pelo Oscar 2023 com um dos títulos mais controversos da competição deste ano: A Baleia (The Whale).
Com estreia no Brasil nesta quinta-feira, 23, a versão para as telas da peça teatral homônima de Samuel D. Hunter divide opiniões ao criar paradoxos. Ao mesmo tempo, oferece a Brendan Fraser a maior performance de sua carreira, há muito combalida. E enquanto discute aceitação e preconceito, ao falar de obesidade mórbida na rotina de um professor gay de redação, o filme sofre acusações de gordofobia (a começar do título) e de carecer de “lugar de fala”, ao ter escalado um ator hétero e não obeso para um papel que demandou de horas de maquiagem. Não por acaso, o filme é um favorito à estatueta de Hollywood nessa categoria, pela transformação física de Fraser: sua aparência em cena é de 200 quilos. Há quem aposte que só ele possa tirar o Oscar de Colin Farrell, o favorito entre os protagonistas concorrentes, em concurso com Os Banshees de Inisherin. Nesta entrevista ao Estadão,no realizador de Cisne Negro (2010) e Réquiem Por Um Sonho (que entra na grade da Mubi no dia 26) nega que toda a celebração em torno do comeback de Brendan tenha sido calculado previamente.
O autor da peça escreveu o roteiro investindo em metáforas, entre elas a referência à prosa do livro ‘Moby Dick’, sempre discutindo conexões afetivas, o que nos leva à ideia de família
“Eu já era um adulto interessado em outro tipo de cinema, como o de Akira Kurosawa, quando Brendan Fraser estava fazendo A Múmia. Fora isso, eu nunca o vi em George, O Rei Da Floresta, nos cinemas. O hype em torno dele cabe a outras gerações, que não a minha”, diz Aronofsky, em entrevista via Zoom. “Quando dirigi O Lutador (The Wrestler), com Mickey Rourke (filme com o qual o realizador conquistou o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2008), ali, sim, eu tinha um explícito projeto de reconfigurar a persona de um astro de outrora. Com A Baleia, foi uma questão de encontro: ao pensar no elenco, vi em Fraser a sensibilidade adequada ao que eu esperava para a história de alguém cuja vida está parada em um grande oceano. O som do filme foi construído como se fosse o som do mar.”
Com uma bilheteria de US$ 20 milhões e um boca a boca de “amei” versus “odiei” que cresce desde sua exibição nos festivais de Veneza e de Toronto – onde Fraser foi laureado com um prêmio honorário –, A Baleia vem sendo unânime no alcance das lágrimas da plateia, uma vez que muitas são derramadas a cada nova exibição. ”Sou um diretor de filmes de baixo orçamento que fala de fraturas emocionais, em busca de medos e sonhos que não são meus, mas nos quais me reconheço”, define-se Aronofsky.
É difícil reter o choro diante do calvário de Charlie (Fraser), um expert em Literatura que dá aulas sobre a arte da escrita via Zoom sempre com a câmera desligada, para esconder de suas turmas online as suas feições. A morte de seu namorado fez com que ele buscasse um analgésico em guloseimas gordurosas, como asas de frango e pizzas.
Sua enfermeira particular, Liz (a americana de origem vietnamita Hong Chau, indicada ao Oscar por um desempenho tocante nesse papel), nota que a pressão dele anda escalando picos de uma morte anunciada. Essa certeza dela acontece no momento em que Charlie é procurado por dois jovens. Um, nada desejado, é um missionário de um culto evangélico, Thomas (Ty Simpkins), que deseja lhe oferecer conforto. A outra, essa assim, bem-vinda, apesar de sua hostilidade, é sua filha adolescente com quem o professor não tinha mais contato, Ellie (Sadie Sink). E ainda há a sua ex, a mãe da menina, vivida por Samantha Morton.
”Samuel, o autor da peça, escreveu o roteiro investindo em metáforas, entre elas a referência à prosa do livro Moby Dick, sempre discutindo conexões afetivas, o que nos leva à ideia de família e, mais do que isso, à percepção de que toda a dinâmica familiar, não importa de qual cultura, é pautada por clichês, seja de desatenção, seja de excessos”, argumenta. O desafio, prossegue, “é construir essas famílias a partir de um apurado desenho de personagens. Cada um deles precisa estar bem delineado, para ir além dos lugares comuns dos afetos. Parto da rotina de um homem em processo de insulamento, que virou uma ilha, em sua dor”. Aronofsky veio ao Brasil em 2017, para lançar Mãe!, outro poço de controvérsias na representação messiânica da maternidade e da criação.
”Existem artistas que se debruçam sobre o mundo que forja seus personagens, de fora pra dentro. A forja que me interessa vem de dentro para fora, ou seja, é o mundo interno dos protagonistas, o oceano que mora em Charlie”, avisa. Aos 54 anos, Aronofsky coincide sua dedicação ao lançamento de A Baleia com a volta ao circuito de seu primeiro longa-metragem, de 1998. No dia 14 de março, o diretor lança nos EUA uma cópia remasterizada de seu cult – que pode ser visto no Brasil na plataforma Mubi – sobre um matemático prestes a encontrar o sentido da vida a partir de uma constante cujo valor aproximado seria 3,1416.
“Rodei esse filme numa época em que o cinema ainda não se havia rendido ao digital e fiquei feliz ao revê-lo, assim como fiquei com a preparação do retorno de Réquiem Por Um Sonho em Blue-Ray. Percebi o quanto ainda consigo sentir neles a presença dos sentimentos que me levaram a filmá-los”, acrescenta o diretor. Sua experiência lhe indica que “o cinema hoje oferece mais plataformas de visibilidade para quem está criando, com novas janelas. O que o cinema não oferece mais é a chance de a gente se manter underground”, pondera Aronofsky. “Não sei que lugar o meu cinema ocupa nessa seleção do Oscar de 2023. Adoraria saber qual é.”
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