“Amor significa nunca ter que pedir desculpas”, disse certa vez alguém famoso no cinema. Não fazia o menor sentido em 1970 – e menos ainda agora. Nas últimas décadas, pedir desculpas virou coisa da moda.
Então, no início de Pisque Duas Vezes, de Zoë Kravitz, quando o magnata da tecnologia Slater King se senta no sofá de um programa de TV e pede desculpas por alguma coisa que não sabemos ao certo o que é... bem, é uma cena familiar. Escolha o agressor, escolha o ano: a pessoa famosa faz um pedido de desculpas protocolar, sai de cena por um tempo (neste caso, para uma ilha remota) e depois retorna, presumivelmente perdoada. Já vimos esse filme antes.
Não que não seja divertido ver de novo, especialmente porque Channing Tatum está super encantadora e charmosamente arrogante no papel. Pisque Duas Vezes é uma grande virada para ele como ator e ainda mais para Kravitz, sua parceira de vida, como diretora e corroterista desse filme estiloso, ambicioso e badalado que parece aspirar a ser um Corra! com temática de gênero ou um thriller da era #MeToo com ecos de Bela Vingança.
Quase lá
E Kravitz quase chega lá. Com a ajuda de um elenco fantástico, ela oferece uma produção cinematográfica surpreendentemente confiante e divertida, até que tudo parece desmoronar numa bagunça narrativa. O problema não é a intrusão repentina do horror gore – afinal, é mesmo um filme de terror. O problema é que de repente falta lógica. Talvez você não consiga desviar os olhos, mas, diferentemente dos filmes de Jordan Peele ou Emerald Fennell mencionados acima, você também não vai conseguir explicar o que está vendo.
É muito divertido, até não ser mais – o que é um jeito bem preciso de descrever a experiência de Frida (Naomi Ackie, excelente). Garçonete de coquetéis que faz nail art, Frida racha um apartamento meio acabado com Jess (Alia Shawkat). Quando as duas conseguem um trabalho de garçonete numa festa de arrecadação de fundos, elas planejam malandramente trocar de vestido no meio do processo para que possam se misturar aos convidados ricos.
No fim das contas, trata-se de uma arrecadação de fundos da empresa de Slater e, quando Frida tropeça, é o bilionário em pessoa que a ajuda a se levantar. Ele a apresenta a seus amigos e, pouco tempo depois, Frida e Jess não conseguem acreditar na própria sorte: estão no avião de Slater, a caminho de sua ilha da fantasia particular.
As praias são borbulhantes – e o champanhe também. Os armários de Frida e Jess estão cheios de roupas de resort num tom branco e elegante, combinando com as roupas das outras convidadas: Camilla e Heather, sempre meio avoadas e/ou chapadas, além da afiada e competitiva Sarah, que está a fim de Slater e, portanto, de olho em Frida. (A Sarah de Adria Arjona é sem dúvida a atuação mais convincente do filme).
A comida, preparada por Cody (Simon Rex), um amigo de Slater, é impecável. (Seus outros amigos são interpretados por Christian Slater, Haley Joel Osment e Levon Hawke, e seu terapeuta por Kyle MacLachlan). O álcool é abundante, os lençóis são macios e há drogas também – para serem usadas “com intenção”, de acordo com Slater, seja lá o que isso signifique. Os dias são longos, as noites são mais longas ainda, e pouco tempo depois ninguém mais sabe que dia é hoje.
Mas por que isso acontece, exatamente? Bem, todos os celulares foram confiscados logo no primeiro dia por Stacy, a assistente mal-humorada de Slater – Geena Davis, muito engraçada, mas um tanto subutilizada (e ninguém jamais deveria subutilizar Geena Davis). Mas parece haver algo mais profundo em jogo. Estamos tentando evitar spoilers, mas, como Jess diz a Frida, “Tem alguma coisa errada com este lugar”.
Jogando o jogo
Seria fácil de descobrir só de ver os rostos estranhamente aterrorizantes dos funcionários do resort (tons de Corra!), que certamente estão escondendo algo. Além disso, por que de repente Frida está com sujeira sob as unhas? E o que aconteceu com a mancha vermelha no seu vestido? Coisas estranhas estão acontecendo.
Mas, ainda assim, Frida parece mais irritada com o fato de Jess não estar relaxando e curtindo. Elas estão numa ilha deslumbrante, e ela está sendo xavecada por alguém importante. “Pela primeira vez na vida, estou aqui e não sou invisível, então, por favor”, ela diz à amiga.
E assim o jogo de aparências continua – aquele jogo, tão familiar na era do Instagram, de sempre fingir que está se divertindo. “Você está curtindo?”, Slater pergunta mais de uma vez. “Claro!”, diz Frida, cada vez menos convincente.
E quando tudo se transforma num caos sangrento, alguém ainda sugere, assustadoramente: “Existe uma versão disto aqui em que todos nós estamos nos divertindo muito”.
Há uma corrente mais profunda aqui. Kravitz disse que sempre se espera que as mulheres sorriam, joguem o jogo, finjam que estão se divertindo e “esqueçam” as coisas ruins. Assim, o esquecimento é um elemento importante de seu filme, que não vamos revelar.
De qualquer forma, de fato existe uma versão do filme de Kravitz em que todos nós estamos nos divertindo muito. Ela está quase lá. E todo mundo está muito curioso para ver o que ela vai fazer na próxima.
Pisque Duas Vezes, lançamento da Amazon/MGM, tem classificação indicativa de 17 anos pela Motion Picture Association “por conteúdo violento forte, agressão sexual, uso de drogas e algumas referências sexuais’. Duração: 103 minutos. Duas estrelas e meia de um total de quatro estrelas. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.