Em tempos em que o cinema busca cada vez mais traduzir o realismo de nossos dias para as telas, é interessante ver a estreia de uma produção como A Estrela Cadente, em cartaz nos cinemas brasileiros. Dirigido, produzido, roteirizado e protagonizado pelo belga Dominique Abel e pela australiana Fiona Gordon, o longa é uma expressão de audiovisual surrealista, que leva o cinema de máfia para um caminho que nunca vimos antes, sem medo do ridículo, do bobo e do divertido.
Exibido no Festival de Locarno e ganhador do Prêmio do Júri no Beaujolais Meetings of French-speaking Cinema, o longa tem como protagonista Boris, interpretado pelo próprio Abel, um homem que, no passado, foi um ativista, mas, agora, vive uma vida mais tranquila, como barman num bar underground, onde espera ter deixado o passado para trás.
Só que as coisas não saem exatamente como ele espera. Afinal, um homem (Bruno Romy), vítima de um atentado, o reconhece e busca vingança. É aí que Boris e sua mulher Kayoko (Ito) encontram, por acaso, um duplo do barman (também interpretado por Abel), e veem nele a chance de salvar a vida de Boris. O que eles não esperavam era que Fiona (Gordon), a ex-mulher de Dom, entrasse em cena para saber o que aconteceu com o marido.
A máfia dos anos 1980 está de volta
É uma trama de máfia, mas que não deixa de brincar com suas bizarrices – colocando esses dois personagens idênticos, dividindo a cena e tentando evitar a morte de Boris. Tem algo de cinema noir por aqui, com pessoas furtivas nas sombras, mas também muito de Aki Kaurismäki e toda a estranheza de sua câmera e de seus personagens desconfortáveis.
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“Escrevemos este roteiro há muito tempo, no final dos anos 1980″, conta Dominique, empolgado ao ver seu filme cruzando o Atlântico, ao Estadão. “Queríamos brincar com esses códigos e fizemos o roteiro sem saber como transformá-lo em filme. Por isso, tivemos que deixá-lo de lado e fazer outros curtas e longas. Toda vez que a gente começava um novo filme, nós pensávamos nessa história, mas não sabíamos o que estava faltando”.
O que estava faltando, segundo o casal, era entender o que estava motivando aquela tentativa de assassinar Bóris. Não queriam transformar esse filme puramente em uma trama de vingança de mafiosos ao melhor estilo O Poderoso Chefão – isso, diz ele, não é belga, nem canadense. Abel e Dominique geralmente querem dizer algo com suas histórias.
“No final, voltamos a trabalhar nisso durante a época da covid, um período de tensões sociais e de Donald Trump. A gente sentia muita discordância e sentíamos que um mundo sem consciência estava destruindo tudo. Isso nos remeteu aos anos 1980, quando a extrema esquerda declarou guerra ao capitalismo”, diz. “Decidimos fazer de Bóris um ativista”.
Com isso, muitas perguntas surgiram na mente de Dominique e Fiona enquanto revitalizaram essa história para os tempos de hoje: que tipo de ativista é esse que eles querem colocar na tela? Qual é o tipo de violência que vai permear A Estrela Cadente?
“Se a raiva é legítima, nós nos perguntamos se a violência é legítima hoje em dia”, diz ele. “Gostamos de brincar com citações e grandes ideias, mas de uma maneira simples, porque não queremos ser muito políticos. Estamos tão perdidos como todos e queremos introduzir uma transposição humorística, que olhamos com os olhos de um palhaço.”
No final, também é interessante perceber A Estrela Cadente como um filme dos anos 1980 perdido nos anos 2020: em tempos em que o realismo toma conta de tudo, surge esta pequena pérola, que coloca a trama mafiosa surrealista em destaque. Um novo caminho?
“Fazemos parte de um nicho de cineastas que também gostam de se afastar do realismo. Não nos sentimos sozinhos”, diz Fiona. Dominique completa: “É um pouco necessário para nós falar sobre coisas que são importantes. Acho que as histórias dos palhaços, da comédia física, são sempre um pouco trágicas e precisamos desse amor. Não é para minimizar a densidade do problema, na verdade, é só para olhá-lo e rir juntos sobre isso”.
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