Estreia nesta quinta-feira, 25, o aguardado live action de A Pequena Sereia, uma versão reimaginada da animação de 1989 com a missão de atualizar um dos maiores clássicos dos estúdios Disney. Dirigido por Rob Marshall, o filme é estrelado pela novata Halle Bailey em uma versão mais empoderada de Ariel, ideia reforçada pelas adições à trilha sonora.
É impossível entender o impacto comercial e criativo de A Pequena Sereia, assim como o carinho nutrido pelos fãs nas últimas décadas, sem levar em consideração a forma como a trilha sonora original mudou os rumos da Disney.
Qual é a importância da primeira trilha?
O filme marcou a primeira colaboração de Howard Ashman e Alan Menken para a empresa do Mickey e foi amplamente creditada por reviver a era dos musicais na animação. Isso se tornaria uma chancela inconfundível do estúdio, rendendo à dupla a missão de repetir o sucesso em duas das principais apostas da década seguinte, A Bela e a Fera (1991) e parte de Aladdin (1992).
Mas o sucesso comercial da trilha sonora de A Pequena Sereia e sua vitória dupla no Oscar de 1990 (Melhor Trilha Original e Melhor Canção Original, pela tropical “Under The Sea”) não estavam nos planos da Disney.
Foi Howard Ashman quem bateu o pé para que o filme fosse um musical e incluísse “Parte do seu mundo” (“Part of Your World”), hoje uma marca registrada da animação e uma das faixas mais executadas do estúdio, mesmo na era do streaming.
A música foi criada inicialmente por Ashman para ser o momento de “I want” (“eu quero”) em A Pequena Sereia, um conceito importado do teatro musical e depois replicado nas animações seguintes da Disney, que define o momento do primeiro ato no qual o público descobre as motivações principais da heroína, apresentadas em uma balada.
É possível inclusive ver algumas semelhanças entre a melodia cantada por Ariel e a de “Somewhere That’s Green”, da trilha de A Pequena Loja de Horrores (1982), trabalho anterior do compositor.
Ataques racistas dão novo tom às canções
Em “Parte do seu mundo”, ouvimos pela primeira vez como Ariel se sente presa e angustiada no mar, o tamanho da sua curiosidade sobre os humanos e a vontade de explorar as “coisas estranhas, curiosas” da superfície.
Na nova versão cantada por Halle Bailey, a letra sobre a jornada de uma sereia que deseja ser humana acaba ganhando um significado a mais quando consideramos os ataques racistas que a atriz sofreu quando foi anunciada no papel.
A técnica vocal de Halle se distancia ao máximo da original usada por Jodi Benson, mas sem perder a essência da música. Apesar de manter os pontos altos nas mesmas partes, a experiência da cantora no R&B traz novas camadas de dor ao ápice do verso.
Não à toa, essa tem sido a canção usada desde o início para divulgar o live-action, liberada aos poucos em teasers, trailers e, finalmente, em sua versão completa. “É a gema de tudo que criamos”, já disse Menken.
Na animação, “Parte do seu mundo” aparece pelo menos cinco vezes ao longo do filme, entre a versão original, reprise, melodias espalhadas em cenas específicas e créditos.
Agora, no live-action, a música ganha uma segunda reprise até então inédita, mas que bebe diretamente na versão demo escrita originalmente por Ashman e depois editada por ser muito “triste” para o filme (ao invés de “assista e verá que um dia serei parte do seu mundo”, a letra dizia “mas eu posso ver que nunca serei parte do seu mundo”).
Erros e acertos de Lin-Manuel Miranda
Essa segunda reprise de “Parte do seu mundo” é a novidade musical que soa mais fiel ao original e, discutivelmente, a melhor das quatro novas e inéditas contribuições de Lin-Manuel Miranda à trilha sonora. Nessa, a música é usada para entendermos melhor o estado emocional de Ariel ao ser supostamente trocada por Eric (Jonah Hauer-King), o tamanho da sua desilusão amorosa e desencanto pelo mundo humano.
Em suas três outras composições, Miranda parece tentar conter o universo de A Pequena Sereia em seu próprio modo de compor. “Pela primeira vez” (“For the first time”), por exemplo, funciona bem na teoria como uma alegoria do que a sereia sente ao se ver humana pela primeira vez.
Na prática, a forma falada e quase desesperada como a música é escrita parece mais apropriada aos personagens de Encanto ou Hamilton (ambos assinados por Miranda) do que à sereia. O verso específico em que ela questiona se o povo do mar só serve pra ser comida dos humanos chega a ser constrangedor.
“No fundo dessas águas” (“Uncharted Waters”) é a única música cantada por Eric e, apesar de bem executada no que se propõe (mostrar os anseios do príncipe), não chega a ser exatamente cativante em comparação com as outras. Nesse sentido, a melhor adição é “Zum Zum Zum” (“The Scuttlebutt”), um rap leve e animado dividido entre Sebastião e Sabichão, que dá espaço de sobra para a comédia de Daveed Diggs e Awkwafina brilhar.
Inevitavelmente, é o trabalho brilhante de Menken e Ashman, 31 anos após a morte deste último, que garante a magia dos números musicais em A Pequena Sereia. A nova versão de “Aqui no Mar” (“Under the sea”), agora com vocais adicionais de Bailey, soa ainda mais espalhafatosa e dançante, enquanto “Vanessa’s Trick”, agora sem letras, é a melhor demonstração possível da potência vocal de Bailey.
Politicamente correto, mas sem sentido
O live-action de A Pequena Sereia tem aproximadamente uma hora a mais do que a animação original, o que dá tempo de sobra não apenas para novas músicas, mas para cenas de ação mais emocionantes, personagens mais aprofundados e uma dimensão maior das riquezas de Atlântida. Nesse sentido, é o tanto que o roteiro se aventura ou não nessas profundezas que traz o melhor e o pior da nova versão.
De um lado, as preocupações que rodaram as redes sociais nas últimas semanas sobre o filme ser “muito escuro” se mostram irrelevantes já nos primeiros minutos. Tudo o que era apenas turvo na animação ganha mais vida e detalhe, do cemitério de navios no fundo do mar à caverna de Ariel, abarrotada com chaves, candelabros, quadros, livros, garrafas e bibelôs.
Ao mesmo tempo, faltou profundidade a alguns detalhes do novo roteiro, principalmente nos novos personagens. As irmãs de Ariel são uma promessa não cumprida de mostrar toda a diversidade do povo do mar, aparecendo em apenas duas cenas, algumas delas sem uma fala sequer. Da mesma forma, a rainha e mãe de Eric parece apenas ultrapassada em seu medo dos deuses marítimos, e o fato de que o príncipe foi adotado após um naufrágio é jogado sem muita importância no meio de uma discussão.
Escorregão na adaptação
Apesar disso, o maior erro do live-action foi ter anunciado previamente que algumas músicas originais teriam letras adaptadas para se adequar às ideias de hoje, uma proposta que parece promissora, mas cuja execução ficou sem sentido. “Beije a moça” (”Kiss the girl”), por exemplo, perdeu os versos em que o beijo roubado “não precisa de uma palavra, nenhuma palavra”, mas manteve os que indicam o silêncio de Ariel (no filme, já sem voz a essa altura), causando ainda mais confusão sobre a ideia de consentimento.
A pior dessas perdas, entretanto, veio em “Pobres Corações Infelizes” (“Poor Unfortunate Souls”), o cânone da vilã e único momento onde Úrsula mostra todo seu deboche, desprezo e visão de superioridade pelo mundo humano. Melissa McCarthy acerta em cheio o tom do humor sádico que tornou a Bruxa do Mar uma das malvadas mais adoradas da Disney, adicionando ainda uma dose extra de remorso e veneno ao caldeirão, mas mesmo com todo o empenho a subtração de uma estrofe inteira da música não deixa seus tentáculos se esticarem tão longe.
Notadamente, a estrofe retirada servia para Úrsula descrever como Ariel poderia conquistar o príncipe sem a sua voz (dica: usando a “linguagem corporal”). O trecho foi removido porque, segundo a Disney, ensinaria que meninas não podem ser “tagarelas” ou precisam “falar menos”. Mas quando você pensa que isso tudo é dito como parte dos artifícios de uma vilã para enganar a mocinha, é meio óbvio concluir que o conselho não deve ser seguido. Mais triste ainda perder o deboche com que Ashman tinha gravado a demo original com a própria voz.
Talvez o maior problema do novo A Pequena Sereia seja por vezes subestimar a inteligência ou maturidade do público, mas ainda assim ele já pode ser encarado como o melhor live-action desta nova era da Disney. Ao contrário de seus antecessores, o filme sabe dosar com cuidado as novidades sem fugir ao original, usando o avanço da tecnologia para acrescentar mais fantasia à tela e preenchendo buracos na história para deixá-la mais crível, ainda que derrape aqui e ali.
Agora, por exemplo, podemos ver como Eric e Ariel levam vidas praticamente espelhadas. Apesar de a sereia ser fascinada com os humanos, seu sonho de explorar a superfície é terminantemente proibido pelo pai. Ao mesmo tempo, o príncipe evita suas obrigações políticas e tenta a todo custo explorar as “águas profundas” dos sete mares, mas é impedido pela mãe.
Em sua nova versão, Ariel é mais esperta, motivada e curiosa, elevada do posto de princesa a heroína da sua própria história. É ela quem salva Eric, o cachorro, o reino, derrota Úrsula e até vence uma nova cena de porradaria com Vanessa, a versão humana da bruxa. Assim, o live-action acaba acertando seu objetivo e mostrando às novas e velhas gerações que não depender de um príncipe e tomar as rédeas do próprio destino pode acabar valendo a pena.
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