Sem militância, “lacração”, nem agendas ocultas. Assim A Pequena Sereia chega aos cinemas. Mas nem por isso deixa de ser um filme conectado com o próprio tempo. A Disney achou o equilíbrio preciso entre responsabilidade social e magia.
A especulação de que seria um filme ativista surgiu após a escalação da atriz e cantora negra Halle Bailey como protagonista. Não é. Mas isso porque a nova Ariel é da geração Z. Diferentemente da versão antiga, ter consciência coletiva faz parte do DNA dela.
Enquanto a animação original do estúdio mirava a exclusiva - e problemática - relação entre a sereia e o príncipe, agora os caminhos de Ariel e Eric se cruzam de forma mais orgânica. As justificativas são mais contextualizadas e convincentes.
Apesar de praticamente usar a animação como storyboard, o live-action entrega um filme muito diferente. Ao menos em essência. Diálogos, enquadramentos e sequências podem ser literalmente iguais, mas ajustes como uma frase a mais na boca da vilã Úrsula (Melissa McCarthy) transformam totalmente a história.
Ariel: antes e depois
A principal distinção é a natureza de Ariel. A sereia de 1989 era irresponsável e deslumbrada. Sonhadora, sim. Mas descolada da realidade.
A versão século 21 não. Ainda apaixonada e curiosa pelo mundo dos humanos, ela tem sede de conhecimento. A nova Ariel é independente e dona de si, ao invés da adolescente revoltadinha de outrora.
Agora, ela sabe o que quer. E, mais importante, sabe por quê. Assim, mesmo ludibriada pela antagonista, ainda consegue tomar decisões mais conscientes.
Para a dubladora da personagem no Brasil, Laura Castro, isso é uma enorme demonstração de coragem. “Uma mensagem muito legal da Ariel é: a cada escolha uma renúncia. Quando você quer muito uma coisa, às vezes você tem que abrir mão de outras para conquistar o seu sonho”, diz.
O canto da sereia
Talvez o aspecto mais problemático do original, a motivação da jornada da princesa muda. Lá, aos 16 anos e dominada de paixões pelo príncipe Eric que salvara, era levada por Úrsula a seduzi-lo. Um homem feito. Adulto. Um retrato do papel da mulher 34 anos atrás?
A nova versão não determina a idade de Ariel. Ela até é chamada de adolescente, mas o contexto a estampa mais como uma mulher jovem. Faz sentido, se lembrar que cientistas australianos definiram que a adolescência pode ir até os 24 anos, conforme artigo publicado na revista Lancet Child & Adolescent Health.
Desta vez, a sereia é retratada como uma jovem obstinada em busca do sonho. E o príncipe não é o objetivo-fim. É apenas o elemento derradeiro para a jornada atrás da conquista do que ela realmente ama: a vida sobre as próprias pernas.
Outro elemento que contribui com o novo longa são as adições. O meio da história está mais longo e mostra como Ariel e Eric vão descobrindo similaridades. Interesses em comum. Aspirações semelhantes.
O envolvimento dos dois fica mais verossímil. O nascimento do amor mais verdadeiro e independente do encantamento pelo canto da sereia.
Por que a pequena sereia é negra?
De acordo com o diretor do longa, Rob Marshall, escolher uma atriz negra para o papel não foi um requisito da produção. “Tudo o que eu fiz foi procurar a melhor Ariel do mundo”, disse em entrevista ao Estadão.
A opção gerou ataques racistas à atriz por supostamente não se encaixar no perfil da personagem. Uma criatura mitológica, é bom lembrar. Que existe unicamente na fantasia.
Mas a Disney encontrou a fórmula de justificar como o rei Tritão branco interpretado por Javier Bardem tem uma filha negra. Ruiva e branca no original, Ariel tinha seis irmãs com traços quase imperceptíveis de outras etnias.
Desta vez o estúdio trata ficção como ficção e entrega - embora ainda muito depressa - visuais mais próximos do que seriam os povos dos sete mares que elas representam. A falsa polêmica é jogada fora.
Representatividade além da tela
O compromisso com a representatividade foi repetido no Brasil com a dublagem da protagonista. “Para o teste da Pequena Sereia só colocaram atrizes e cantoras pretas, então isso já é um avanço muito grande”, diz Laura.
“Uma mensagem nessa nova releitura é mostrar para as meninas pretas que elas podem ser o que elas quiserem. Podem ser sereias, podem ser princesas e chegar aonde elas quiserem”, completa a dubladora.
Não é só no mar que as coisas estão mais diversas. Em 1989, a animação fazia parecer que só havia pessoas brancas no mundo. Agora não. Com o segundo ato mais bem elaborado, a produção conseguiu tempo e espaço para mostrar pluralidade.
A exemplo da família não convencional de Ariel, Eric também ganha contexto diferente. A mãe negra é inserida naturalmente, mas o detalhe da adoção dele passa quase despercebido. São apenas duas menções, a primeira meio velada.
Um oceano que não existe mais
Embora no século passado a poluição marinha já fosse significativa, o debate sobre o tema não era barulhento o suficiente para figurar na tela da Disney. Hoje é.
De ao menos duas formas a discussão aparece em A Pequena Sereia. Na mais subliminar, o deslumbre das cenas subaquáticas mostra mares cada vez mais raros. Intocados. Coloridos. Resplandecentes.
Parece um aceno às gerações Z e Alfa, os adolescentes e pré-adolescentes de hoje. Ver na tela, com o primor hiperrealista do live-action, um cenário ameaçado pelas montanhas de lixo plástico e óleo indica um convite a defender esse bem comum.
Fique por dentro
O outro recado ecológico é mais direto. A sequência de naufrágios que os humanos atribuem ao rei das águas vira problema para as criaturas marinhas. E uma sequência muito clara sobre isso foi incluída sem forçar a barra.
Embate de gigantes
Apesar de as filmagens terem terminado em 2021, A Pequena Sereia acaba por levantar pautas sociais muito presentes nos Estados Unidos hoje. E no mundo também.
Nas últimas semanas, o governador da Florida e candidato à presidência dos EUA, Ron DeSantis, enfrenta fuga de mão de obra e paralisia de serviços em razão da lei que implantou contra imigrantes ilegais. O texto gerou pânico inclusive entre os imigrantes legais. E Florida é o Estado onde fica a Disney.
Em A Pequena Sereia, o príncipe e futuro rei Eric tem fascínio por transpor fronteiras. E expressa fortemente o desejo por conhecer novos povos e valorizar a pluralidade.
DeSantis é o governador que, um ano atrás, assinou a lei apelidada de “Não diga gay”, contra a qual a Disney declarou guerra. Isso fez o hoje candidato a presidente reagir intensamente ao estúdio.
Em dado momento do novo filme, Ariel diz para o pai que só o que queria era ser ouvida, o que resultou em atitude positiva dele. Não é muito diferente de ativistas do hoje, como a ambientalista Greta Thunberg e o lema que a trouxe à superfície: “Como ousam?”
Assim como as crianças da geração Alfa que, aos 10, 12 anos, marcharam nos EUA contra leis discriminatórias. “Proteja a juventude LGBTQI+”, pode ser lido em cartazes pelo país.
AULAS DE ATUAÇÃO E MANIPULAÇÃO DIGITAL
Entre muitas novidades da produção, o que não mudou em nada foi a soberania de Úrsula como vilã. Ela ganhou novos contornos de roteiro? Sim. Melissa Macarthy nasceu para interpretá-la? Sim - está irretocável, inclusive, valendo ver a cópia legendada. Mas tudo isso só agrega à melhor personagem das duas versões.
O que nem sempre foi o melhor na leva de remakes da Disney é a opção pela inexpressividade dos animais. Um puritanismo frequentemente desnecessário, como no caso de O Rei Leão, em que a conexão com as personagens fica dificultada.
Em A Pequena Sereia, porém, o estúdio acertou a mão. O realismo dos animais mesclado às criaturas míticas contribui com a imaginação. E Linguado e Sebastião estão excelentes. Divertidos, engraçados e comoventes.
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