Opinião | ‘A Semente do Fruto Sagrado’, filme que levou cineasta a fugir do Irã, personifica a opressão

Mohammad Rasoulof fez o filme escondido, foi condenado à prisão e encontrou refúgio na Alemanha. Seu longa foi exibido em Cannes, está entre os pré-indicados do Oscar ao lado de ‘Ainda Estou Aqui’ e acaba de estrear no Brasil

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Foto do author Matheus Mans

Quando A Semente do Fruto Sagrado fez sua primeira exibição em Cannes, em 2024, ninguém sabia se o diretor Mohammad Rasoulof (Não Há Mal Algum) iria aparecer para a sessão de gala. Afinal, o cineasta fugiu do Irã após receber uma sentença de prisão por fazer o filme em segredo, com ajuda de amigos para cruzar fronteiras. Esse medo todo é compreensível: A Semente do Fruto Sagrado, em cartaz nos cinemas e cotado para o Oscar 2025, transpira política.

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O longa mergulha no seio de uma típica família iraniana. O pai acabou de ser promovido a juiz de instrução, julgando algumas dezenas (ou até centenas) de presos políticos todos os dias. A mãe comemora o novo momento – afinal, devem passar a morar em residência oficial e ter uma vida mais tranquila. As duas filhas, mesmo felizes, veem o mundo de outra forma: acreditam que o Irã está passando por uma onda forte de repressão pelo governo.

Nesse embate, aos poucos, a família vai se desestruturando e se desestabilizando. Nada acontece rapidamente – aliás, o filme chega perto das três horas de duração.

Cena do filme alemão 'A Semente do Fruto Sagrado', do cineasta iraniano Mohammad Rasoulof Foto: Films Boutique

Pra começo de conversa, o pai passa a ter uma arma para “proteger a família”, o que já é um ponto de tensão. Onde vai ficar a arma? As filhas vão saber disso? Enquanto isso, as duas garotas querem ajudar uma amiga ativa politicamente, mas violentamente repreendida pela polícia.

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Transformação de clima

Nas pequenas coisas, o clima da casa vai se transformando. Lembra, de certa forma, o momento em que a casa dos Paiva, em Ainda Estou Aqui, passa a ser mais fechada, mais escura. Os militares levam Rubens Paiva e Eunice fica sem chão, mas precisando ser a estrutura da família que ficou.

No longa de Rasoulof, mesmo que não tenha agentes do governo entrando na casa e prendendo, a opressão se desenha de várias formas. É o jeito que a mãe olha pela janela; como os gritos de protestos – e os tiros – chegam no apartamento; a forma como o pai é o centro das atenções; os vídeos nos celulares das filhas. Tudo isso contribui, aos poucos, para uma atmosfera mais densa, escura e pesada.

No entanto, há uma diferença central entre A Semente do Fruto Sagrado e Ainda Estou Aqui, se continuarmos nessa comparação entre possíveis concorrentes diretos do Oscar de 2025 (os dois estão entre os pré-indicados a melhor filme internacional): o rosto da opressão. No longa de Walter Salles, não há essa personificação. Já o diretor iraniano trabalha durante mais de duas horas para chegar nos últimos 30 minutos e mostrar que a opressão no Irã tem rosto, barba, nome e sobrenome. É alguém.

Dá para entender o último ato do filme de Rasoulof como uma espécie de releitura, iraniana e mais contemporânea, da frase atribuída ao ex-vice-presidente Pedro Aleixo na assinatura do AI-5 - de que não desconfiava das “mãos honradas do presidente Costa e Silva”, mas sim “do guarda da esquina”. É a síndrome do pequeno poder e que mostra como o sistema de opressão é contagiante em vários níveis.

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Rasoulof, quase caindo na armadilha de fazer um thriller ao final, busca não apenas perguntas, mas também uma resposta sobre o que deve ser feito com opressores.

Aliás, vale aqui relembrar a sessão de gala de Cannes: Mohammad Rasoulof apareceu no evento, contrariando todas as expectativas. Em coletiva de imprensa na época, explicou que fez o filme em segredo, mas que precisou fugir na pós-produção. Partiu rápido e deixou o Irã para trás. Como mensagem, disse em coletiva de imprensa de Cannes que não é para ter medo. “Eles querem nos desencorajar – mas não se deixe intimidar. Eles não têm outra arma além do medo”, disse, antes de voltar para a Alemanha, onde se refugia até hoje.

'A Semente do Fruto Sagrado' rendeu ao cineasta Mohammad Rasoulof uma sentença de prisão no Irã; ele vive hoje na Alemanha Foto: Mares Filmes/Divulgação

No final, A Semente do Fruto Sagrado se transforma em um alerta. Rasoulof, carregado com melancolia, vê que não apenas seu país passa por um momento opressor, mas que isso contamina o povo – o que é muito pior. Em inglês, o filme chega com o título The Seed of the Sacred Fig. A semente do figo sagrado. É uma referência a uma espécie de planta que age como parasita, controlando a hospedeira. Cai no topo da árvore e logo toma conta. Assim como o pai, que não existe mais. Para Rasoulof, agora ele é o Estado.

Opinião por Matheus Mans

Repórter de cultura, tecnologia e gastronomia desde 2012 e desde 2015 no Estadão. É formado em jornalismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie com especialização em audiovisual. É membro votante da Online Film Critics Society.

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