Elisabeth Sparkle (Demi Moore) está no auge de sua carreira e beleza. Ganhou uma estrela na calçada da fama, é comentada por todos os produtores de Hollywood e é a principal estrela de um programa de ginástica, que supervaloriza o foco no corpo da personagem. Tudo vai bem, até que tudo desmorona. Sparkle passa a ser vista como velha, ultrapassada. Querem novos rostos. Querem uma nova Elisabeth Sparkle.
É justamente essa engrenagem barulhenta, poderosa e aniquiladora que move a trama de A Substância, longa-metragem que chega aos cinemas nesta quinta-feira, 19. Sparkle termina os primeiros 30 minutos de projeção no buraco, no fundo do poço. Parece não haver esperança. Até que a diretora e roteirista Coralie Fargeat (Vingança) mostra toda sua sagacidade ao trazer ao filme um remédio, que cria uma espécie de clone da pessoa.
Sparkle aplica o tal remédio e, de dentro dela, nasce Sue (Margaret Qualley). Ela é linda, jovem e cativante. Tudo que Hollywood quer – nada do que Sparkle pode ser. É um sistema complicado em que Sue pode viver livremente por uma semana enquanto Elisabeth fica semimorta, caída no banheiro. Quando termina o prazo, chega a vez de Sue ficar escondida em casa, sem consciência, enquanto a personagem de Demi Moore passa a viver de novo.
Uma jovem eterna
É uma dinâmica esperta e provocativa. Fargeat se vale dessa dinâmica de ficção científica, que parece uma mistura mais violenta de A Cura com O Retrato de Dorian Grey, para falar sobre padrões e sobre mulheres que são deixadas para trás quando as primeiras rugas surgem no rosto. Sue e Elisabeth, afinal, são a mesma pessoa, mas em estágios diferentes. Seria a criatura uma versão recauchutada da criadora? Com plásticas e harmonização?
Fargeat questiona essa pressão e sobre a transformação estética, com a necessidade das atrizes sempre se voltarem aos seus “eus” mais jovens. Obviamente, nunca é o bastante e não há limites para até onde chega a transformação corporal.
É aí que a cineasta passa a se inspirar mais fortemente em Cronenberg, cineasta que levou o “terror corporal” para outro nível, e brinca de chocar: as transformações passam a ser mais violentas. Elisabeth se torna quase uma caricatura de si própria, enquanto Sue parece cada vez mais bonita.
Aliás, o “terror corporal”, ou body horror, é a principal aposta de linguagem aqui. Esse é um tipo de terror que brinca com transformações corporais. O horror está na diferença, na mudança, na alteração - seja um homem que se transforma em um inseto em A Mosca, no desejo que nasce a partir de carros e máquinas em Titane e em Crash: Estranhos Prazeres, ou, ainda mais direto ao ponto, em um futuro em que cirurgias despertam o prazer, em Crimes do Futuro.
Body horror desperta a tensão a partir dessa ousadia visual - assim como nojo, prazer e outros sentimentos complicados de entender. A diretora de A Substância, enquanto isso, se vale desses sentimentos e reverte para a lógica hollywoodiana, mostrando o caminho quase obrigatório para a alteração física e corporal. Como lidar com isso?
Assim como já tinha mostrado no mediano e controverso Vingança, a diretora e roteirista parece não saber como ou quando parar. Limites vão sendo testados. O sangue jorra em direção à câmera, quase caindo no colo do espectador. Deformação e amputação se tornam parte do dicionário de Fargeat. A metáfora vira pesadelo, as ideias se transmutam em uma realidade distópica que, de vez em quando, parece não estar tão distante assim. É um sonho real.
A Substância ainda tem a sorte de contar com duas atrizes plenas em cena. Qualley (Tipos de Gentileza) sabe ser sedutora na medida certa, enquanto a insanidade invade aos poucos seu olhar, seus gestos, sua fala. Já Demi Moore se entrega de corpo e alma, aparecendo na tela de um jeito que ninguém poderia imaginar. É a melhor atuação dela desde Até o Limite da Honra, de 1997. É um absurdo as duas não serem consideradas para o Oscar de 2025.
Filme chocante e provocativo, A Substância sabe causar desconforto ao falar sobre essa máquina de moer atrizes que é Hollywood. Assim como essa máquina não sabe parar, Fargeat também não sabe – ou, melhor, não quer. É um filme sem limites e sem escrúpulos, finalmente falando do jeito certo sobre o que precisa, e deve, ser dito.
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