Houve um tempo em que Liam Neeson morria de medo de Mia Farrow.
A mesma Mia Farrow cuja aparência magra e delicada a transformou em um ícone de cabelo "joãozinho" em O Bebê de Rosemary, parecendo completamente vulnerável às forças invasoras do mal. A mesmíssima que é 31 centímetros mais baixa que Neeson, que tem 1,93 m; e cuja voz cadenciada estremece em contraste com a sonora voz de barítono dele.
E mesmo assim, em Maridos e Esposas, o drama de Woody Allen do qual ambos participaram em 1992, é Mia quem parece estar em uma posição de vantagem. Presa em um casamento que está indo por água abaixo, a personagem de Mia é atraída para um triângulo amoroso destrutivo, competindo com uma amiga (Judy Davis) pelo belo editor de revista interpretado por Neeson. É demais para o personagem dele, que se apaixona profundamente pela personagem de Mia, mas se encolhe diante de todo esse conflito doméstico. Ele é muito sensível para lidar com isso.
A surpreendente segunda fase da carreira de Neeson, que também está em um recém-lançado thriller da Netflix, The Ice Road, tem deixado o velho Neeson dos dramas históricos (A Lista de Schindler, Kinsey - Vamos Falar de Sexo, Michael Collins - O Preço da Liberdade) e papéis mais leves (Simplesmente Amor) para trás, rebatizando-o como um astro de ação calmo, esguio e implacavelmente eficiente nos moldes de Clint Eastwood ou Charles Bronson. Ele já levou a melhor contra albaneses ligados ao tráfico sexual, matadores de aluguel de cartéis do México e do Colorado, inúmeros capangas europeus, sequestradores de aviões, gangsters e matilhas de lobos rosnando no deserto do Alasca. E embora ele também consiga trabalho como ator dramático e dublador, o público passou a esperar pelos constantes filmes de ação com Neeson no papel principal.
Mesmo tendo provado ser um lutador talentoso no passado - no papel que dá título a Darkman - Vingança sem Rosto, um mestre jedi na primeira prequel de Star Wars e o supervilão Ra's al Ghul em Batman Begins, para citar apenas alguns exemplos - ele se reinventou completamente aos 50 e poucos anos, com o thriller de sucesso de 2008 Busca Implacável. Isso pode ter parecido uma novidade na época, mas passados 13 anos desde então, ele tem quebrado ossos e atirado em canalhas mais ou menos no ritmo de um filme por ano. Essa nova experiência de carreira tem desenvolvido seu próprio mini arco, que dá provas da atuação em evolução de Neeson como uma estrela de ação e das prioridades inconstantes do sistema dos estúdios de Hollywood, que não é mais capaz de acomodá-lo.
Na verdade, nada disso teria acontecido se não fosse pelos franceses. Embora Busca Implacável pareça um filme tipicamente americano, como Desejo de Matar estrelado por Charles de Bronson, a produção nasceu com Luc Besson, o prolífico escritor, produtor e diretor que revolucionou o cinema francês convencional com Nikita - Criada Para Matar em 1990. Besson trabalhou dentro e fora de Hollywood por décadas - O Profissional, O Quinto Elemento e Lucy são seus, entre dezenas de outros - e sua produtora de filmes EuropaCorp criou o gênero de filmes de médio orçamento em língua inglesa que agora são raramente produzidos nos Estados Unidos. Busca Implacável estreou na França quase um ano antes de a Twentieth Century Fox levá-lo aos cinemas americanos no final de janeiro, um espaço no calendário tradicionalmente reservado para produções que causam constrangimentos aos estúdios.
Aquele primeiro Busca Implacável foi um sucesso que provou que Besson, que co-escreveu o roteiro e produziu o filme para o diretor Pierre Morel, tinha uma compreensão mais apurada dos gostos americanos do que Hollywood. Como um ex-integrante das Forças Armadas Especiais dos EUA e oficial da CIA que persegue aqueles que sequestraram sua filha de 17 anos em Paris para tráfico sexual, Neeson estabeleceu um modelo que se repetiria em papéis futuros: o solitário machucado com "um conjunto específico de habilidades", divorciado ou viúvo ou de alguma outra forma emocionalmente inacessível, com um senso de justiça que o posiciona como um fora da lei. Existe aquele resíduo de sensibilidade que separa Neeson das estrelas de ação mais sangue-frio do passado - ele ainda é aquele pai humilde, competindo por um lugar na vida de sua filha - mas ele é implacável e engenhoso em seu trabalho, uma criatura com o olhar determinado de vingança.
Construir uma franquia em torno da premissa muito específica de um integrante da família sendo sequestrado é tão tenso quanto parece, mas o faturamento mundial de cerca de 225 milhões de dólares levou a duas sequências e uma série com histórias de origem na NBC sem a participação de Neeson. Busca Implacável 2 apresentou outro sequestro sob a premissa comicamente absurda de que o pai do vilão em Busca Implacável iria querer vingar a morte injusta do filho que era envolvido com tráfico sexual. Por sua vez, Busca Implacável 3 rezou para que ter alguns dos personagens jogados em uma van fosse o suficiente para fazer jus ao nome do filme.
Embora os filmes da franquia Busca Implacável sejam em sua maioria risíveis, o personagem de Neeson conectou-se com o público e sua masculinidade à moda antiga inspirou mais talentosos cineastas a aproveitar sua popularidade. O diretor Joe Carnahan o escalou como John 'Hannibal' Smith em seu revival dispensável de Esquadrão Classe A nas telonas, mas ambos pareciam significativamente mais interessados em A Perseguição, um filme de sobrevivência que mostra o caçador interpretado por Neeson e um grupo de trabalhadores de uma refinaria de petróleo no Alasca lutando contra uma nevasca, várias matilhas de lobos e motins internos. Carnahan apresenta o filme como um Sob o Domínio do Medo selvagem, um rito de passagem que reduz seu herói aos seus instintos mais básicos, chegando a um nível onde há pouca distinção entre o homem e o lobo alfa.
O thriller de baixa qualidade Caçada Mortal, do roteirista de Irresistível Paixão, Scott Frank, apelou para um conjunto particular de habilidades de atuação que os filmes de ação de Neeson ainda não haviam exigido. Como um ex-policial alcoólatra que se tornou detetive particular, Neeson tenta descobrir quem sequestrou e matou a esposa de um traficante de drogas, mas trata-se de uma jornada pessoal de redenção também, realizada por um homem ainda entorpecido pela culpa e tristeza dos erros do passado. Ele se transformou em um herói noir moderno.
A característica de livro de bolso da maioria dos thrillers que Neeson participou provavelmente explica por que eles alcançaram um público tão consistente: ele sempre entrega o prometido. Os quatro filmes que fez com o talentoso cineasta hispano-americano Jaume Collet-Serra têm títulos tão genéricos que são mais lembrados por suas sinopses. Há aquele com toque hitchcockiano de identidade trocada (Desconhecido), aquele do avião (Sem Escalas), também o do trem (O Passageiro), além daquele em que Neeson é um assassino que decide enfrentar seu chefe da máfia (Noite Sem Fim). Tudo elegantemente bem construído, tudo preenchido ao máximo com atores de qualidade, todos do tipo de filme que você assistiria feliz por meia hora até perceber que já os tinha visto antes.
Tem havido sinais de que o interesse por esse tipo de atuação de Neeson esteja diminuindo, mesmo quando ele sutilmente se inclina para os tipos de papéis que Eastwood desempenhou em filmes recentes como Gran Torino e A Mula, homens mais velhos teimosos que são trazidos com relutância para fora de suas conchas. Depois do entediante Vingança a Sangue Frio, uma total americanização de um thriller norueguês chamado O Cidadão do Ano, Neeson fugiu de alguns filmes durante a pandemia de covid-19 que sinalizou um distanciamento de papéis fisicamente exigentes à medida que ele se aproxima dos 70 anos, apoiando-se mais em sua atuação comovente e cansada da vida. Legado Explosivo é sobre um ladrão de banco que tenta entregar seus milhões ilícitos ao FBI para começar um novo relacionamento com uma ficha limpa, mas dois agentes corruptos estragam seu plano de aposentadoria. Na Mira do Perigo mostra Neeson como um fazendeiro malvado na fronteira mexicana que avisa as autoridades quando os imigrantes entram em sua propriedade, mas ele abre uma exceção para uma mãe e um filho que fogem da violência de um cartel.
Todos esses filmes mais recentes caíram nas mãos de distribuidoras de segunda linha, como a Open Road ou a Lionsgate, porque Hollywood não tem interesse em produções que possam render lucros modestos e que eram o núcleo de seus negócios quando heróis grisalhos como Neeson eram mais comuns. Há esperança de que os serviços de streaming como a Netflix, com sua sede incessante por conteúdo, entrem em cena com mais filmes como The Ice Road (que foi lançado na sexta-feira nos EUA) e atendam a um nicho de mercado. É apenas justo que Neeson, a estrela de ação, seja uma arma de aluguel, perambulando nas margens empoeiradas da indústria e aceitando os empregos quando eles surgem.
TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA
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