É interessante notar como A Cor Púrpura, livro de Alice Walker publicado em 1982, continua a dialogar com a sociedade – não apenas norte-americana, berço e cenário da obra de Walker, mas com o resto do mundo.
Afinal, esta sua história fala sobre preconceito, violência doméstica, sororidade. Temas que estão em voga. Por isso, não é surpreendente que ganhe uma nova versão nos cinemas, 41 anos após a publicação do livro e 39 anos depois da primeira adaptação nas telonas por Steven Spielberg.
Leia também
No entanto, não espere encontrar um novo A Cor Púrpura, em exibição em grande circuito desde quinta-feira, 8, como se fosse apenas um copia e cola do que Spielberg fez lá atrás. Não é nada disso. Dirigido pelo cineasta ganense Blitz Bazawule, o novo longa-metragem é uma adaptação não diretamente do livro de Walker, mas do musical que fez sucesso na Broadway lá pelos primeiros anos da década de 2000. Uma nova proposta.
A história, porém, continua a mesma: Celie (Fantasia Barrino) é uma mulher maltratada pela vida. Foi abusada pelo pai, que a separou de seus dois filhos, e depois foi entregue para ser a esposa de Mister (Colman Domingo), um homem violento e que a enxerga apenas como empregada doméstica. Sua vida, porém, ganha novos contornos e significados com a chegada de outros personagens, como Sofia (Danielle Brooks) e Shug (Taraji P. Henson).
Difícil não sentir, logo de cara, um estranhamento no tom do filme. É uma história bastante pesada, que fala sobre solidão, violência doméstica e abuso, mas que aqui é pontuada por músicas que não necessariamente conversam com a história.
Por exemplo: há uma cena em que a jovem Nettie (Halle Bailey), irmã de Celie, fala que o pai tentou abusar dela e, por isso, fugiu de casa. Um minuto depois, há uma cena bastante dançante, com uma música para cima, com a personagem de Bailey (de A Pequena Sereia) falando para se divertirem.
Obviamente, a jovem não precisa ficar cabisbaixa o tempo todo – ela, afinal, está de olho em uma nova vida após esse acontecimento. Só que isso prejudica bastante o ritmo do filme e, principalmente, a emoção que sentimos na história. Há uma perda de conexão.
A Cor Púrpura: o elenco é a alma do filme
No entanto, por mais que esse problema de ritmo preocupe no começo, A Cor Púrpura, aos poucos, vai se recuperando. Não exatamente por essa falta de tom, que persiste em vários momentos até o final do filme, mas principalmente pelo elenco que faz um trabalho impressionante – e aqui, neste ponto, é difícil não fazer comparações com o elenco original. Fantasia Barrino, por exemplo, é uma revelação: a jovem atriz, que venceu a versão americana do programa Ídolos, tem uma voz marcante e sabe colocar drama na história.
Sua personagem é a alma e a essência de A Cor Púrpura, nesta nova versão, misturando esses dois mundos que não se encaixam em um primeiro momento, mas que emocionam cada um à sua maneira. Apesar da corrida acirrada, ela merecia uma vaga no Oscar 2024. Não dá para dizer que é melhor do que Whoopi Goldberg, mas chega bem perto.
E não é só Fantasia que se sai bem. Todo o elenco de apoio está absolutamente extraordinário: Colman Domingo, indicado ao Oscar por Rustin, faz um Mister ainda mais odiável, com camadas de profundidade em sua personalidade que não vemos no filme de 1985.
Danielle Brooks, que conquistou a única indicação ao Oscar do filme, é a Sofia perfeita, misturando toda a explosão da personagem com seu final triste e melancólico. Se sai melhor do que Oprah Winfrey que, naquele 1985, ainda estava iniciando sua carreira.
Acima de tudo, uma grande história
Nessa mistura de sensações, com cenas fora de tom e um elenco que transpira talento, fica a sensação de que A Cor Púrpura é daqueles filmes que não se encontram. Mas não é isso. Afinal, o longa, que também é produzido por Spielberg e Oprah, continua emocionando simplesmente por conta de sua história.
Como já dito, a jornada de Celie atravessa tempos e gerações e se faz necessária ser discutida ainda hoje. O texto de Walker se comporta como outros clássicos da literatura dos Estados Unidos, como A Letra Escarlate e As Vinhas da Ira, e, mesmo com marcas do tempo em seus personagens, continua dialogando com o agora.
Por mais que Bazawule não seja Spielberg, há perícia aqui em contar a história desses personagens que sofrem com males que afetam a vida das pessoas até hoje. Não importa, no final das contas, a sensação de que o filme não sabe misturar músicas e drama tão bem.
O público acaba arrebatado pela emoção, seja pela identificação, pela força da história ou pelo trabalho dos atores, e A Cor Púrpura consegue reproduzir o mesmo sentimento do filme de 1985: a sensação de que estamos vendo uma grande história sendo contada.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.