Perto do final de A Verdadeira Dor, filme escrito e dirigido por Jesse Eisenberg, em cartaz nos cinemas norte-americanos (e sem data de estreia prevista para o Brasil), dois primos de primeiro grau interpretados por Eisenberg e Kieran Culkin se aproximam da casa onde sua avó recém-falecida tinha vivido antes do Holocausto, na Polônia.
O personagem de Eisenberg, David, o mais reservado da dupla, propõe que eles deixem pedras na soleira da porta, brincando com a tradição judaica de deixar pedras nos túmulos.
“Ela não está enterrada aqui”, diz Benji, o primo interpretado por Culkin.
“Sim, eu sei, mas foi o último lugar em que ela esteve na Polônia”, diz David. “O último lugar onde qualquer um de nós esteve.”
A recordação improvisada, a autoconsciência, o confuso senso de dever – tudo isso é característico de como os descendentes americanos das vítimas do Holocausto, duas gerações depois, relembram hoje um evento que, quase 80 anos depois de ter terminado, pode parecer algo que ainda governa suas vidas – e as vidas de todos os judeus e de todo mundo.
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Esse grupo é conhecido como a terceira geração de sobreviventes do Holocausto, e A Verdadeira Dor é representativo de sua produção. Ou melhor dizendo: em geral, não se trata muito do Holocausto. Os primos saem juntos numa excursão organizada para os locais e memoriais do Holocausto na Polônia, mas a maior parte da viagem – com exceção de uma visita ao campo de concentração de Majdanek – é leve e divertida. David e Benji sentem não exatamente pelo Holocausto, mas por sua avó, que sobreviveu a ele. Os primos enfrentam seus próprios problemas, como a dissipação de seu relacionamento. Eles se perguntam por que estão ali, afinal.
Dois parentes – um primo distante que foi sobrevivente do Holocausto e uma tia que deixou a Polônia em 1918 – inspiraram Eisenberg a abordar o tema. A antiga casa da tia foi usada para filmar a casa da avó fictícia.
“Estou contando a história da terceira geração com todas as suas contradições”, disse Eisenberg numa entrevista recente, “com sua distância, seu afastamento privilegiado, seu fascínio grotesco, além de toda a reverência que se deveria ter”.
Sob a ótica da terceira geração
Obras de arte sobre o Holocausto feitas por ou sobre a terceira geração vêm surgindo desde que os netos (ou sobrinhos e sobrinhas-netas) dos sobreviventes tinham idade suficiente para fazê-las. Os primeiros anos deste século viram exemplos importantes, como o romance Tudo se Ilumina (Ed. Rocco, 2002), de Jonathan Safran Foer, e a história de família The Lost (2006), de Daniel Mendelsohn.
Mas só mais recentemente a terceira geração assumiu o centro do palco. Sua perspectiva agora domina a escrita e a arte sobre esse evento seminal da história moderna. Os últimos dois anos testemunharam uma safra abundante de trabalhos desse tipo: teatro (Here There Are Blueberries, Prayer for the French Republic), televisão (Transparent, Boneca Russa), história (Plunder, Come to This Court and Cry), um número impressionante de graphic novels e livros de memórias.
A perspectiva da terceira geração sobre o Holocausto é cuidadosamente protegida, desafiadoramente distanciada, explicitamente filtrada, extremamente autoconsciente. Essas histórias não pertencem fundamentalmente aos escritores ou artistas, que estão sempre relembrando esse fato a você e a eles mesmos.
“Eles sabem que algo é importante para eles, que os afetou e que também é a história deles”, disse Amy Kurzweil, autora de duas memórias que retratam as narrativas de diferentes avós sobre o Holocausto. Artificial: A Love Story, do ano passado, incorpora a história de Kurzweil às histórias de seu avô, um maestro que fugiu de Viena em 1938, e de seu pai, o futurista Ray Kurzweil, que construiu um chatbot de inteligência artificial usando as palavras escritas do falecido pai.
“Mas eles sabem das coisas que não vivenciaram”, acrescentou Kurzweil sobre ela e seus colegas, “e quase hesitam em assumir essas histórias. Essa ansiedade e essa humildade são uma coisa boa, na verdade”.
Acima de tudo, essas obras praticamente nunca se satisfazem com a história simples tão familiar às crianças em idade escolar. Em Plunder (Mariner Books, 2021), o escritor Menachem Kaiser descobre que muito do que ele sabia sobre a propriedade de seu avô na Polônia, que se perdeu no Holocausto, estava errado. A peça de Joshua Harmon, Prayer for the French Republic, que teve uma temporada na Broadway este ano, refrata a história dos sobreviventes e descendentes franceses por meio de um ingênuo primo americano em Paris. Never Again Will I Visit Auschwitz (Fantagraphics), livro de memórias de Ari Richter publicado este ano, incorpora as histórias de fuga de seus avós às suas próprias histórias de assimilação e privilégio nos Estados Unidos.
Numa pesquisa do Pew Research Center de 2013, 73% dos judeus americanos disseram que lembrar o Holocausto era “essencial para ser judeu” – mais do que “trabalhar pela justiça/igualdade” ou “preocupar-se com Israel”. Mas a forma que a lembrança do Holocausto vem assumindo nunca foi tão urgente. Os sobreviventes mais jovens do Holocausto com alguma lembrança da experiência estão chegando aos 90 anos de idade.
A forma como o Holocausto será lembrado e como suas lições serão aplicadas – da Bósnia a Darfur, à Ucrânia e, segundo muitos, a Israel e à Faixa de Gaza – agora depende desse grupo e, daqui para frente, virá com sua “ansiedade e humildade”, como disse Kurzweil.
Refletindo sobre o contínuo fascínio de sua geração pelo Holocausto, Eisenberg se perguntou se isso representava uma busca por significado. “Como nossas vidas ficaram muito confortáveis, estamos buscando uma conexão com algo mais fundamentado nos extremos do que a humanidade pode fazer”, disse ele. “Talvez estejamos, de certa forma, nos confortando ao nos conectarmos a algo trágico, porque nossas vidas parecem não ter sentido.”
Como as duas primeiras gerações do Holocausto escreveram sobre sua história
O diferencial da perspectiva da terceira geração está na forma como ela se rebela contra o cânone: a arte do Holocausto da primeira e da segunda gerações.
A primeira geração – os sobreviventes, bem como aqueles que tentaram contar as histórias dos sobreviventes nas primeiras décadas após o Holocausto – estava, compreensivelmente, obcecada pela tarefa de transmitir os fatos.
A Noite (Ed. Sextante), de Elie Wiesel, e É Isto um Homem? (Ed. Rocco), de Primo Levi, são livros que falam diretamente das experiências de seus autores, e até mesmo Anne Frank pretendia que uma versão de seu diário funcionasse como testemunho.
Documentários cinematográficos como A Tristeza e a Piedade (1972), de Marcel Ophuls, e Shoah (1985), de Claude Lanzmann, que apresentam extensas entrevistas com testemunhas e sobreviventes em primeira mão, são minuciosos e até mesmo neuróticos quanto à fidelidade ao que ocorreu. Em sua obra de nove horas, Lanzmann, cuja família judia francesa se escondeu durante a guerra, repudia as imagens históricas.
Vários livros em primeira pessoa sobre os campos de concentração eram deliberadamente artísticos e até mesmo tomavam algumas liberdades factuais, como demonstraram estudos como A Thousand Darknesses (2010), de Ruth Franklin. Mas, acima de tudo, eles tinham a intenção de serem recebidos como testemunhos confiáveis. “Parece-me desnecessário acrescentar”, conclui o prefácio de Levi a É Isto um Homem?, “que nenhum dos fatos foi inventado”.
A segunda geração – os filhos dos sobreviventes – lutou com sua relação ambivalente com o evento, que era próximo o bastante para afetá-los (alguns até afirmaram que eles mesmos ficaram traumatizados), mas sempre fora de alcance.
“Se um abismo se abrisse na vida da Primeira Geração, eles poderiam suspirar do outro lado e relembrar a vida de Antes”, escreveu em 2001 o romancista Melvin Jules Bukiet, filho de um sobrevivente, “mas, para a Segunda Geração, não existe o Antes. No início era Auschwitz”.
Maus (Ed. Quadrinhos na Cia, 1986, 1991), a história em quadrinhos de Art Spiegelman, vencedora do Prêmio Pulitzer, sobre a terrível odisseia de seus pais durante o Holocausto, também trata de como essa experiência moldou indelevelmente seus pais e, por sua vez, moldou Spiegelman. Numa breve seção sobre a morte de sua mãe por suicídio em 1968, Spiegelman desenha a si mesmo, um jovem nos Estados Unidos dos anos 1960, usando listras de campo de concentração.
Em contraste, a terceira geração está distante o suficiente para não ter legados tão íntimos. No lugar da credibilidade inatacável da primeira geração – característica cuja virtude é elogiada por várias narrativas fraudulentas de sobreviventes – e da angústia da segunda geração está a indiferença e a modéstia da terceira geração.
A terceira geração também se beneficiou de um ambiente de informações muito diferente, devido ao fascínio tardio pelo Holocausto – despertado pelo julgamento de Adolf Eichmann em 1961, ampliado pela minissérie Holocaust, da NBC, muito assistida em 1978, e turbinado em 1993 por A Lista de Schindler e pela inauguração do Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos, em Washington –, aos avanços tecnológicos e ao fim da Guerra Fria.
“Não havia outros livros sobre nós”, disse Helen Epstein, filha de sobreviventes e autora do estudo pioneiro sobre trauma intergeracional, Children of the Holocaust (1979). “Agora, se você é da 3G”, disse Epstein, usando um termo para a terceira geração, “você tem toneladas de memórias do Holocausto, você tem todos esses recursos nos museus do Holocausto, todas as fitas de áudio e vídeo, o arquivo Spielberg, o arquivo Yale. E a Europa Oriental agora está disponível, tanto on-line quanto presencialmente”.
A passagem do tempo também concedeu a uma faixa mais ampla de escritores e artistas a permissão para fincar sua bandeira no Holocausto, um direito que tinha sido guardado zelosamente para as testemunhas e seus filhos.
Bukiet argumentou, em um livro de 2001, que o assunto deveria ser reservado aos sobreviventes e seus descendentes, como ele próprio – “Estas histórias nos pertencem. Pertenciam aos nossos pais, e eles as legaram a nós”. Mas ele se retratou recentemente. “Agora, em vez de achar que ninguém além de nós deveria escrever sobre isso”, disse ele numa entrevista, “acho que todos deveriam escrever”.
A responsabilidade da condição de vítima
As obras da terceira geração sobre o Holocausto abrangem o engraçado e o triste, o fiel e o ímpio.
Muitas vezes, são autolacerantes. Os primos de A Verdadeira Dor fazem piadas que também não são piadas sobre estar num trem na Polônia. Richter brinca sobre a gentrificação de um bairro tradicionalmente polonês-americano em Nova York – e depois se repreende. A série da Amazon Transparent – que apresenta um enredo essencialmente de terceira geração na segunda temporada – traz ‘Joyocaust’, um número musical de humor, no episódio final.
Um traço que distingue muitos trabalhos da terceira geração, disse Josh Lambert, professor de estudos judaicos do Wellesley College, é o contraste entre a vitimização dos sobreviventes do Holocausto e a compreensão do privilégio de seus descendentes. Heavyweight (William Morrow Paperbacks, 2024), livro de memórias de Solomon J. Brager, contextualiza a vida luxuosa de seus ancestrais judeus alemães no imperialismo europeu antes da Primeira Guerra Mundial.
“Se pensarmos em termos políticos, devemos pensar em como eles acumularam riqueza na Alemanha dos anos 1910, dos anos 1920″, disse Lambert sobre Plunder, de Kaiser, em que a casa confiscada de um avô acaba se revelando originalmente uma propriedade de investimento. “É uma pergunta fascinante, e é difícil perguntar sobre pessoas da sua própria família. Não é muito o que se vê nas memórias da segunda geração.”
A obra de Richter, Never Again Will I Visit Auschwitz, trata do relativo conforto do artista em meio ao que ele caracteriza como a hostilidade da direita americana contemporânea contra os imigrantes. “Temos que ver isso como algo que afeta a todos nós”, disse Richter em entrevista. “Não se trata apenas da minha família ou do povo judeu.”
O desejo de extrair uma lição maior – e invariavelmente progressista – do Holocausto pode produzir a maior tensão persistente entre esta geração e as anteriores.
O desconforto de muitas instituições judaicas quanto à caracterização da conduta de Israel em Gaza como “genocídio” (seja qual for o mérito da alegação, sobre a qual há discordância) afasta o genocídio dos judeus de uma maneira incongruente com a tendência da terceira geração ao universalismo. “A palavra ‘genocídio’ foi criada por Raphael Lemkin para definir o Holocausto”, disse Bukiet, escritor da segunda geração. “A popularização da palavra no último ano é notável e repulsiva.”
E a visão das gerações anteriores do Holocausto como uma posse perpétua dos sobreviventes e de seus descendentes – e, talvez, de todos os judeus – ainda pode ser vista, por exemplo, nas formas como os museus do Holocausto se esforçam para fazer com que o passado desaparecido pareça iminentemente acessível. Hologramas de sobreviventes, exposições interativas alimentadas por inteligência artificial e uma recriação itinerante do “anexo secreto” de Anne Frank comunicam um imediatismo chocante.
“A criação de um avatar de sobrevivente que vive perpetuamente faz parte do projeto de investir numa narrativa interminável das vítimas, em que estamos sempre tão próximos do Holocausto que precisamos sempre pensar que acabamos de sobreviver ou que estamos prestes sofrer um novo Holocausto”, disse Brager.
Ser da terceira geração, insistem seus membros, é ter a proximidade certa com o evento: perto o bastante para guardá-lo na memória, mas não perto demais a ponto de querer que esteja no tempo presente; perto o bastante para sentir que essa história lhes pertence, mas não perto demais a ponto de achar que não possa ter significados diferentes para as outras pessoas.
“O Holocausto é uma das atrocidades históricas mais bem documentadas no Ocidente, há uma espécie de obsessão por ele – mas há algo estranho em ter laços pessoais, familiares, com essa história sobre a qual fazem filmes de Hollywood, porque aí você começa a ver sua história como um filme de Hollywood”, disse Kurzweil.
“Mas você não pode cair nessa automitologização”, acrescentou ela. “É uma herança confusa.” / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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