Opinião | ‘Ainda Estou Aqui’ é um drama íntimo nascido de uma decisão política, como ‘Você Não Estava Aqui’

Os sofrimentos de Eunice Paiva e de Ricky, personagem do filme de Ken Loach, parecem particulares e são de partir o coração, mas têm suas origens em movimentos que sonegam a cidadania que precisa vir antes de qualquer expectativa de saúde mental, felicidade ou bem-estar

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Por Amanda Mont’Alvão Veloso

O cinema tem uma capacidade sublime de fazer com que a gente experimente a beleza no mesmo instante que a revolta. É como se a câmera nos educasse para uma vivência de emoções supostamente incompatíveis na teoria, mas plenamente assimiláveis na prática quando temos, diante de nós, as impressionantes atuações de Fernanda Torres em Ainda Estou Aqui (Brasil, 2024), e de Kris Hitchen em Você Não Estava Aqui (Reino Unido; França, 2019).

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Além de nos enternecer e nos indignar, os filmes de Walter Salles e Ken Loach guardam outras conexões, obviamente que em níveis de gravidade diferentes. Neles, duas famílias são covardemente atiradas em uma profunda ruína social cujos efeitos são frequentemente interpretados como um desafio pessoal e a superação passa a depender exclusivamente da força de vontade e dos recursos psíquicos, materiais e financeiros da pessoa afetada. Sem que ela tenha condições de obter (e desencorajada de reivindicar) uma reparação social, só lhe resta um caminho individual.

Eunice Paiva (um farol de iluminação intensificada por Fernanda Torres), viúva que não pôde velar o marido, Rubens Paiva, porque fora torturado, morto e desaparecido pela ditadura civil militar que assolou o Brasil entre 1964 e 1985, só pôde deixar o grito de revolta circular quando uma outra morte lhe deu a chance de ver um corpo, pois era mãe de cinco filhos e precisava lhes transmitir a continuidade da vida em meio ao desconcerto e à dor. Eunice, em sua subjetividade, colocou o sorriso e a doçura em sua luta. Mas tivesse ela se “rendido” à tristeza, à introspecção, à ira ou à insubordinação, todas reações legítimas, provavelmente seria chamada de depressiva, colérica ou outra nomenclatura que achate sua história.

Fernanda Torres como Eunice Paiva em 'Ainda Estou Aqui' e Kris Hitchen como Ricky Turner em 'Você Não Estava Aqui'. Foto: Alile Dara Onawale via Sony Pictures/Divulgação e Joss Barrat via Vitrine Filmes/Divulgação

Já Ricky, cuja expressão contida, mas perseverante, é magistralmente emprestada do ator inglês Kris Hitchen, vê-se iludido pela promessa de liberdade e êxito propagandeada pelo trabalho como motorista de entregas. O chefe, que não é chefe, pois Ricky é o próprio chefe, dissera a ele que quanto mais rápido fosse, maiores seriam seus ganhos – “você é o mestre do seu destino”. O sonho de uma vida menos dura foi rapidamente capturado pelo discurso de quem vende fórmula de sucesso e lucra com a dedicação alheia. Disseram que a felicidade estava ao alcance do esforço dele, então, mesmo que profundamente machucado, mesmo que à mercê de assaltantes e oportunistas, mesmo que perdendo o respeito do filho, Ricky, que mal consegue enxergar, dirige sua van branca rumo a uma vida que se tornou sem saída. Alguém que o visse saindo daquele jeito poderia achar que era um louco, um fracassado, um inconsequente que não segura a onda no burnout?

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Ambas as famílias sofrem, dentre outros motivos, pelo emudecimento da mãe Eunice e do pai Ricky. A voz deles conserva força, mas fica a serviço de manter algum tipo de normalidade, sem que possa dar uma resposta sincera à pergunta “tá tudo bem?”. Os olhos perdem o brilho, a convivência coleciona absurdos que forçosamente passam a ser vividos como banais. Falar sobre poderia ser uma maneira de fazer a distinção entre o habitual e o infame, mas quais palavras dariam ideia do que estava acontecendo, e quem as escutaria?

Endereçar o sofrimento só funciona se do outro lado houver um destinatário qualificado para receber o que é transmitido pelo remetente. A Psicanálise surgiu a partir do interesse de um neurologista, Sigmund Freud, em escutar mulheres que, negligenciadas em suas dores expressadas no corpo, eram tratadas como loucas ou farsantes. Vendo que o saber médico não alcançava o que elas diziam, ele então entendeu que a palavra escutada era testemunho, legitimação, cura e, sobretudo, uma ética de cuidado.

Testemunhar os desamparos de Eunice e Ricky parte nosso coração, pois eles guardam uma outra semelhança: não tiveram a quem denunciar os abusos que sofreram. Eunice foi uma mulher que não veio da ficção, mas sim da impune realidade brasileira de lares que têm e tiveram seus familiares cruelmente assassinados, seja no período ditatorial, ou nas periferias em que a democracia nunca chega para quem tem a pele escura. No filme, que é baseado no livro de memórias de seu filho, o escritor Marcelo Rubens Paiva, acompanhamos a esperança da mãe se espatifar ao perceber que quem poderia coibir o abuso é justamente quem o comete. É preciso um terceiro, alguém de fora da ditadura, para que a dor de Eunice pelo menos ganhe uma certidão que evoque um corpo e uma validação de sua perda inestimável.

Ricky também não tem a quem recorrer em uma relação que extingue a proteção oferecida por um direito trabalhista e por um organismo fiscalizador, já que ele se tornou empreendedor de si e das suas solitárias tentativas de seguir em frente como se não houvesse perda ou abuso. É no contato com o outro que podemos perceber o que se esconde sorrateiramente na rotina; daí a perversidade da reforma trabalhista brasileira de 2017, que substituiu a então definitiva mediação dos sindicatos e da Justiça pela “negociação” sempre assimétrica entre empregados e patrões.

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Privado do convívio familiar pelo tempo e pela exaustão, Ricky se torna impermeável aos alertas que a esposa, a filha e o filho fazem quanto aos perigosos excessos no trabalho. Um cenário bastante conhecido de quem trabalha na escala 6x1 no Brasil, em que o “um” dia de folga simboliza a exceção, a migalha da sobra, a extraordinariedade que sequer pode ser desfrutada porque o cansaço prevalece e as 24 horas não dão conta de compactar toda a vida que podia ser vivida naquela semana. Viver para trabalhar é o destino a que pelo menos 32 milhões de brasileiros estão condenados, segundo levantamento da Lagom Data.

Os sofrimentos de Eunice e Ricky parecem íntimos e particulares, mas têm suas origens em decisões políticas que sonegam a cidadania que precisa vir antes de qualquer expectativa de saúde mental, felicidade ou bem-estar. Uma anterioridade que ressalta que “aqui”, esse lugar no qual nós, Eunice e Ricky buscamos estar, não pode ser um privilégio, e dificilmente existe no abandono, no desamparo e no individualismo.

Veja o trailer dos filmes

Opinião por Amanda Mont’Alvão Veloso

É psicanalista e autora de “Psicanálise e contradição: o conflito na ponta da língua” (Dialética).

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