Ainda Estou Aqui pode ser visto de vários ângulos. Drama familiar, documento dos horrores da ditadura, luta de uma mulher valente. Tudo isso. E mais algumas coisas, embutidas nesse filme múltiplo, envolvente, emocionante, dirigido de forma madura por Walter Salles, a partir do romance de mesmo nome de Marcelo Rubens Paiva.
O ponto desencadeador da crise é a prisão e desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, no auge da ditadura Médici, em 1971. Foram buscá-lo em casa para prestar depoimento e nunca mais voltou. A mulher, Eunice, também foi presa, junto com uma filha, e solta depois de algum tempo. Voltou para casa com a missão de administrar uma família sem pai, fazer o luto por um morto cujo corpo jamais apareceu e tocar a vida adiante, como pudesse. E como pôde!
Fernanda Torres encarna à perfeição a valentia de Eunice. Em meio ao caos político e emocional, ela procura se equilibrar. Jamais chora diante dos filhos ou de estranhos; desabafa a sós, na intimidade do quarto. A pedra de toque do jogo de interpretação levado por Fernanda é exatamente enxugar essa emoção que adivinhamos à flor da pele; depurá-la ao máximo, contê-la, quase lutar contra ela. De modo que, quando aflora, nos atinge em grau máximo, no plexo solar. Menos é mais.
O texto contém spoilers.
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Esse, aliás, é o tom geral do filme dirigido por Walter Salles, a partir do roteiro de Murilo Hanser e Heitor Lorega, premiado no Festival de Veneza. Sabe que está trabalhando com material de alta densidade emocional, então precisa fazer com que ele não se derrame, que essa história de dor e luta não se transforme em melodrama, ou mera catarse, sem espaço para a reflexão. O drama chega aos poucos, como a invasão sutil de uma casa, até se instalar por completo.
Daí, talvez, a necessidade de uma espécie de prólogo feliz, um quase paraíso que precede a tragédia. Esse éden se localiza no bairro do Leblon, numa casa próxima à praia, onde mora a família Paiva. Pai, mãe, quatro filhas e um filho caçula. Ampla, solar, acolhedora, a casa é um espaço aberto. Respira no entra e sai de crianças e adolescentes vizinhos, amigos de praia, adultos próximos do casal. É um Rio de Janeiro acolhedor, com aquela brasilidade risonha em que ainda se vivia, apesar do cenário político soturno com o golpe de 1964 e, em especial, do golpe dentro do golpe que veio em 1968 com o AI-5 e o fechamento total do regime.
Na aparência, estávamos ainda nos otimistas anos 1950, quando o Brasil se descobria país do futuro, para valer. Era uma família alegre, solar, com um pai afetuoso e de ideias abertas (Selton Mello, ótimo), mãe à maneira dos anos 1950, dona de casa perfeita e carinhosa, filharada solta pela vida.
Era quase como se os Paiva fossem imunes ao clima político da época. Pelo menos assim parecia, embora Rubens tivesse sofrido na carne e no primeiro momento a intervenção dos militares, tendo seu mandato de deputado cassado no início da ditadura. No entanto, arquiteto de formação, levava a vida junto de sua família, seus colegas de escritório, seus amigos - todos politizados e cultos como ele. Sonhava construir uma casa própria para a família num terreno adquirido no Jardim Botânico. O sobrado do Leblon era alugado.
Essa casa à beira-mar é expressão do que se passa na história e de suas mudanças. Aberta e solar no começo, fecha-se e abaixa as cortinas quando chega a polícia e Rubens Paiva é levado. Em outro momento, quando a família deixa o Rio, as imagens serão de uma casa vazia. Cenas poderosas, que vão agregando sentido à saga de uma família, e correm em paralelo com a história do país naqueles anos de chumbo.
Temos aí a interseção do plano individual e do coletivo, tão difícil de costurar e aqui articulada com pleno êxito, com planos precisos e cozidos com delicadeza. Alguns exemplos: Eunice toma um banho de mar, boia na água, num cenário esplêndido; mas um helicóptero militar corta o ar, lembrando que vive-se um Estado de exceção e o idílio natural pode se desfazer a qualquer momento.
Na prisão, Eunice sofre em sua solitária; um carcereiro lhe diz não concordar com aquilo tudo, prova de que talvez o Estado totalitário não seja tão monolítico assim. Quando já se encontram em plena luta pela memória do marido, Eunice e família recebem o repórter de uma revista que deseja fazer uma matéria sobre o caso. O fotógrafo faz uma foto do grupo, que sorri. Ele pede outra foto, mais séria, mais adequada ao teor da reportagem. Não consegue. A família Paiva não chora em público, nem faz cara triste. Resiste. Seu drama é individual e íntimo; a tragédia, sim, é coletiva.
A sutileza é mantida até o fim, quando, num pulo do tempo, Eunice, já idosa e sofrendo do Mal de Alzheimer, passa a ser interpretada por Fernanda Montenegro, numa sequência curta, tornada gigante pela genialidade da atriz. Ela não fala, apenas um brilho no olhar diz tudo e transforma aquele plano simples em pura epifania.
Tais opções narrativas e estéticas colocam Ainda Estou Aqui em posição singular no cinema dedicado aos tempos e crimes da ditadura militar (1964-1985). Sem deixar de ser incisivo (pelo contrário), elimina os perfis heroicos e as atrocidades, como a tortura, em outros filmes tratada em registro de naturalismo cru. Opta pela discrição, sempre, e pela alusão em lugar do confronto direto. Assim fazendo, talvez consiga, como se diz hoje, furar a bolha e atingir públicos maiores, menos interessados em obras ostensivamente políticas, porém sensíveis a dramas familiares.
No caso, a história verdadeira de como uma família feliz pôde ser atingida por atos de arbítrio, típicos de uma ditadura. É a forma de Ainda Estou Aqui ser eficaz e sutilmente político.
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