Amos Gitai volta a Freud e Einstein para entender como evitar e terminar guerras e faz filme

Em São Paulo, cineasta comenta as inspirações para seu novo filme, ‘Por que a Guerra?’, que ele apresenta na Mostra de Cinema, fala de Israel e Palestina, alfineta a Netflix e explica o porquê de seus filmes não mostrarem cenas de guerra

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Foto do author Ubiratan Brasil
Foto: Mário Miranda Filho
Entrevista comAmos GitaiCineasta israelense

Atordoado com os horrores do ataque terrorista do Hamas em outubro do ano passado e também com a não menos violenta reação de Israel, o cineasta Amos Gitai, de 74 anos, decidiu buscar conforto nas reflexões oferecidas por intelectuais. Releu Três Guinéus, um ensaio de 1938 da escritora inglesa Virginia Woolf, e também Diante da Dor dos Outros, iconografia da guerra escrita por Susan Sontag em 2003. Mas foi a correspondência trocada entre Albert Einstein e Sigmund Freud entre 1931 e 1932 que mais inspirou o cineasta israelense, a ponto de ele tomar emprestado o título do livro para seu mais recente filme, Por Que a Guerra?

Destaque da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o longa traz os franceses Mathieu Amalric como Einstein e Micha Lescot no papel de Freud para rastrear as raízes das guerras iniciadas pelos homens. Gitai assina também outro longa presente no festival, Shikun, que, embora finalizado antes do ataque terrorista, também trata de violência. Protagonizado pela francesa Irène Jacob, o filme é uma adaptação da obra Rinoceronte, de Eugène Ionesco, uma alegoria sobre a ascensão do totalitarismo.

A ideia para o filme surgiu durante a polêmica reforma do sistema judicial realizada pelo governo do primeiro ministro israelense Benjamin Netanyahu, que desencadeou enormes manifestações da sociedade civil. O político, aliás, é alvo de críticas de Gitai, que veio a São Paulo convidado pela Mostra.

Ele já planeja retornar no próximo ano, quando deverá criar um projeto para Bienal de São Paulo e também para a exibição da performance House em um teatro do Sesc. O cineasta conversou com o Estadão no sábado, 26, em um hotel na Avenida Paulista, enquanto acompanhava maravilhado as barulhentas músicas dos apoiadores dos candidatos a prefeito em busca de votos.

Cena do filme 'Por que a Guerra?', que Amos Gitai apresenta no Brasil Foto: 48ª Mostra de Cinema de São Paulo/Divulgação

O ataque de 7 de outubro e a guerra em Gaza impactaram a criação de ‘Por Que a Guerra?’, certo?

Sim, foi um grande choque. Primeiro por causa da selvageria do Hamas, assassinando amantes da paz entre eles uma mulher de 70 anos, Vivian Silver, que passou a vida levando crianças palestinas a hospitais em Israel e cujo corpo foi encontrado carbonizado. Em seguida, a destruição de Gaza, com tantas vítimas palestinas. Foi quando quis ler e reler alguns textos para buscar ajuda e conforto nas reflexões de intelectuais. E nessa busca o livro Por que a Guerra? Uma Correspondência entre Albert Einstein e Sigmund Freud foi uma revelação. Essa obra de 1932 continua minha pesquisa sobre como os conflitos armados podem ser evitados e como é possível encontrar soluções pacíficas para reconciliar posições distantes.

Ao dar o título ‘Por Que a Guerra?’, o senhor parece dizer que é importante falar de paz, mas sem jamais se esquecer o que é a guerra.

Exato, porque ainda temos guerras e parece que sempre vamos ter. Acredito que o uso excessivo de imagens de vários conflitos incita a violência quase que de forma pornográfica. Com isso, as pessoas ficam grudadas naquelas imagens, que as intoxicam. O resultado é uma busca por um revide por causa das atrocidades cometidas por todos os lados. Um israelense vê repetidas vezes histórias de mulheres estupradas e sequestradas, enquanto um palestino acompanha a destruição gradual de Gaza. Então, de certa forma, a iconografia não está nos dizendo vamos parar, mas que temos de continuar. É por isso que meus filmes não trazem cenas de guerra, mesmo sendo ela o assunto principal. Por Que a Guerra? não oferece respostas, mas pretende fazer com que nos questionemos.

Amos Gitai, cineasta israelense, em São Paulo Foto: Mário Miranda Filho/Divulgação

O senhor concluiu a produção de ‘Shikun’ um pouco antes do ataque do Hamas. Não pensou em reeditar o filme e acrescentar algo sobre esse fato?

Não pensei. O Oriente Médio vive uma realidade tão vulcânica... Se quiser correr atrás dos eventos, você sempre perderá. E acredito que os dois filmes formam um díptico, um complementa o outro, mesmo que Shikun possa parecer um filme irrelevante.

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Existe explicação para a selvageria das guerras que habitam o nosso mundo?

Um primeira resposta seriam os líderes atuais: Trump, Netanyahu, Giorgia Meloni, sem se esquecer de Bolsonaro. Um coquetel muito ruim de pessoas confiantes de que podem vencer guerras. Políticos que acreditam no uso da força para resolver conflitos. No próximo ano, completam-se 30 anos da morte de Yitzhak Rabin, ex-primeiro ministro de Israel que buscava um acordo entre israelenses e palestinos. Terminou assassinado por um ultranacionalista judeu. Foi um golpe contra paz. E, pior, ainda estamos no mesmo lugar.

Cena do filme 'Shikun' Foto: 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

O senhor acredita então que hoje não há alternativa para a paz?

Não é possível saber. Vou contar uma história. Certa fui a Nablus, cidade ao norte de Jerusalém, no lado palestino, e conversei com o prefeito, Bassam Shaka. Perguntei-lhe se era otimista ou pessimista. Gentilmente, ele me respondeu: Amos, não podemos nos dar ao luxo de ser pessimistas. Bassam está certo, temos que continuar tentando encontrar um acordo.

Qual é sua opinião sobre sobre o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu?

Ele está destruindo componentes importantes do DNA israelense, que é formar uma sociedade aberta, moderna, inovadora, criativa. Netanyahu está colocando um grupo contra outro, fragmentando a sociedade. Como israelense, sou contra sua coalizão de ultraortodoxos e ultradireitistas.

Em uma entrevista ao jornal Haaretz, o senhor disse há alguns anos que Israel é uma sociedade altamente esquizofrênica, na qual há pessoas delicadas e sofisticadas, mas também vulgares, brutais e violentas coexistindo no mesmo corpo. Ainda tem a mesma opinião?

Sim, mas a afirmação perdeu a particularidade porque agora se aplica também aos Estados Unidos, Itália, Brasil e vários outros países. A causa são as mídias sociais, que prefiro chamar de antissociais porque excluem a conversa real e se tornam, em sua maioria, uma máquina de propaganda facilmente manipulável. Vivemos em um mundo em que o diálogo se tornou cada vez mais complicado e isso favorece posições extremas.

Alguns de seus próximos projetos incluem São Paulo. O senhor gosta da cidade?

Sim, gosto pelo mesmo motivo que admiro James Joyce. Explico: é um escritor moderno cuja escrita é muito fragmentada. Joyce fala sobre sua cidade, Dublin, como uma uma justaposição de fragmentos de memórias. É esse tipo de narrativa que me encanta e não a pegajosa e suave que a Netflix gosta tanto (risos). São Paulo é assim: quebrada, fragmentada, e é dessa forma que a humanidade funciona. São Paulo seria um filme em que se precisaria juntar os cacos para contar uma história, e não um melodramas kitsch, doce e açucarado.

Filmes de Amos Gitai na Mostra de São Paulo 2024

  • Por que a Guerra: 29/10, às 22h15, na Cinemateca (Sala Grande Otelo)
  • Shikun: 29/10, às 17h45, na Cinemateca (Sala Grande Otelo); 30/10, às 18h40, no Cinesystem Frei Caneca 5
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