Análise: assistir aos filmes de Luchino Visconti é ver uma arte levada ao seu ápice

É como ler Proust, ouvir Beethoven, contemplar o teto da Capela Sistina. 

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio

Como poucos diretores (muito raros, na verdade), Luchino Visconti realiza a utopia do cinema como arte total. Última das grandes artes a surgir, filho do desenvolvimento tecnológico, o cinema vem depois de todas as outras e também as incorpora. Ou, pelo menos, poderia fazê-lo. 

Cena do filme 'Rocco e Seus Irmãos' Foto: Titanus

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Visconti traz ao cinema o conhecimento profundo do teatro, da música, da ópera, da literatura, da pintura, da escultura, da arquitetura. Leva essa sólida formação humanista ao patamar político da geração que, surgida no após-guerra, volta-se para temas sociais com o neorrealismo. 

Se a sedimentação artística é gigantesca, seu alcance temático também se mostra oceânico. Tenta abarcar o humano em sua totalidade. Não raro apoiado em obras literárias clássicas (Lampedusa, Camus, Thomas Mann), aborda o drama humano pelo lado da angústia da velhice, da morte, da perda do protagonismo social, do amor, do sexo, do conflito, da luta pelo reconhecimento, para usar uma expressão de Hegel

O sentido humano dá-se dentro do quadro de referência histórico, pois o homem é sujeito da contingência histórica e, portanto, da política. Assim, uma obra como Rocco e Seus Irmãos traz a saga da família Parondi, que vai da Lucânia a Milão em busca de melhores condições de vida e vê-se engolida pela cidade grande. Mas essa tragédia familiar e pessoal é vista dentro do contexto da “questão meridional”, aquela que dilacera a Itália no confronto de muitos matizes entre o Norte rico e o Sul pobre. 

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Da mesma forma, em O Leopardo, há a dor da decadência física do Príncipe Salina (Burt Lancaster) e a consciência da proximidade da morte. Porém, a trama fala da finitude e da decadência não apenas de uma pessoa física, mas de uma classe social, substituída por outra em seu protagonismo.

É dessa maneira que o enlace entre o Tancredi (Alain Delon) e filha de ricaço, Angelica (Claudia Cardinale), assinala o pacto servil selado pela aristocracia com a burguesia. Mudando tudo para que nada mude, como ensina Tancredi a seu tio, Salina.

Essa consciência histórica não exclui o mito, pois uma é parte do outro. Com Vagas Estrelas da Ursa, Visconti recria o mito de uma Electra encarnada em mulher de beleza sobrenatural (Claudia Cardinale), que retorna para acertar contas com o irmão. Essa Electra moderna traz em si as contradições do tabu ancestral, mas também as marcas contemporâneas do nazismo. Uma tragédia em dois tempos, portanto.

Ninguém personificou a grandeza e o declínio da civilização europeia melhor que este nobre comunista, que cedo perdeu a fé em sua classe social e, na maturidade, desiludiu-se com a luta social e seus descaminhos (essa trajetória do desalento está em Violência e Paixão, seu penúltimo longa). Assistir a seus filmes é ver uma arte em seu ápice. É como ler Proust, ouvir Beethoven, contemplar o teto da Capela Sistina.