Esta crítica foi publicada originalmente em 2023, quando o filme foi exibido pela primeira vez no Brasil, na Mostra de São Paulo. Indicado ao Oscar, Anatomia de Uma Queda está em cartaz nos cinemas e deve chegar ao streaming até o final de março
O corpo de Samuel é encontrado ao lado do seu chalé nas montanhas da região de Grenoble, na França. Foi acidente, crime ou suicídio? As circunstâncias levam a polícia a suspeitar da mulher do morto, Sandra, investigada e levada a julgamento.
Esse é um resumo a seco de uma obra complexa, Anatomia de uma Queda, filme que deu à diretora francesa Justine Triet a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2023, e que concorre em cinco categorias do Oscar - filme, atriz, direção, montagem e roteiro original. A cerimônia de premiação será neste domingo, 10. Saiba como assistir.
Em entrevistas, Triet diz que a história é ficcional, porém baseada em casos reais contados por magistrados. Também se inspirou em dezenas de filmes de tribunal, gênero no qual os norte-americanos são especialistas, para, por fim, fazer o seu de maneira original.
Escreveu o roteiro junto do marido, o também cineasta Arthur Harari, diretor do deslumbrante Onoda - 10 mil Noites na Selva, que conta a história do soldado japonês que ficou anos escondido nas selvas filipinas, sem admitir a derrota do seu país na Segunda Guerra.
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Anatomia de uma Queda abre-se em duas frentes: a investigação de um possível crime e a exposição da intimidade de um casal. Na verdade, de uma família, pois o casal tem um filho, Daniel, peça importante no drama conjugal revelado a advogados, juízes, testemunhas, jurados e público ao longo do julgamento.
Sandra e Samuel são escritores, com graus muito diferentes de êxito na carreira. Ela é famosa, escreve muitos livros, vende bem, dá entrevistas. Ele tenta abrir caminho na mesma profissão, mas sofre de alguma espécie de bloqueio criativo e não consegue terminar nada. Quando tem uma ideia genial, não é capaz de desenvolvê-la.
Para resumir: ela é um sucesso, ele é um fracasso. Tem mais: o filho é deficiente visual por causa de um acidente de trânsito, pelo qual o pai se sente responsável. Será testemunha importante do drama e talvez possa esclarecer o imbróglio familiar. Ou não.
A estratégia de Triet é usar o julgamento como modo de rememorar esse casamento e seus transtornos. É como escreve Tolstoi em Anna Karenina: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. Essa família, composta por Samuel, Sandra e Daniel, chamada hoje de “disfuncional”, constrói sua infelicidade original, de tal maneira que algo trágico se produza em seu interior. Um acidente? Um suicídio? Um crime?
Com sua proposta bastante porosa, ambígua e pouco linear, Anatomia de uma Queda faz o espectador inclinar-se ora por uma hipótese, ora por outra. Acompanha-se o desenvolver da trama com tensão e atenção, ao longo de 2 horas e 20 minutos de projeção. A cada lance na corte, uma nova camada é adicionada e as dúvidas se adensam.
De fato, tudo é mistério nesse relacionamento a três. Como se ninguém falasse a mesma língua do interlocutor e isso acontece de maneira quase literal. A família vive na França, na região de Grenoble. Sandra (Sandra Hüller) é alemã. Samuel (Samuel Theis) é francês. Ela se expressa mal em francês. Ele não fala alemão. O casal conversa em inglês. E também briga em inglês. Numa das reminiscências (introduzida no julgamento através de uma gravação), Samuel e Sandra discutem, em inglês, com uma intensidade e crueldade que fazem o espectador se lembrar de Cenas de um Casamento (1973), de Ingmar Bergman.
Retrato original de casamento conturbado
Há muitas razões para fazer deste Anatomia de uma Queda uma obra singular - virtude reconhecida pelo júri em Cannes. Não se trata de um filme de um tribunal qualquer. Nem de um retrato familiar disfuncional, como existem às pencas nos serviços de streaming. Nem mesmo da exploração da vida íntima de escritores, em filmes sempre sujeitos a fofocas e a clichês sobre temperamentos fortes, bebedeiras, e exotismos de todo o tipo.
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Muito da originalidade se deve ao roteiro muito bem esculpido pela dupla de realizadores. É um texto adulto, com poucas concessões a finais felizes ou catárticos. Sente-se que os autores não têm medo de deixar a plateia em dúvida. Agem como se o público fosse maduro o suficiente para enfrentar situações pouco claras e ambivalentes. Na França, pelo menos, essa estratégia funcionou. Talvez turbinado pelo prêmio máximo em Cannes, levou mais de um milhão de pessoas aos cinemas - uma proeza para obra de tamanha complexidade moral.
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A escolha de elenco também é muito boa. A começar pela incrível Sandra Hüller (de Toni Erdmann), capaz de manter toda a ambivalência exigida por sua personagem. Intensa e nunca óbvia. Samuel Theis, como o marido, também funciona bem na relação dramática. Embora apareça pouco, é crucial numa das sequências decisivas da história. Também o garoto Milo Machado Graner desperta empatia como Daniel, o problemático filho do casal. Deve-se destacar o também ambivalente advogado de defesa, Vincent, vivido por Swann Arlaud. O elenco secundário está à altura dos atores e atrizes principais. Não apresenta desníveis de interpretação, fatais em obras de recorte realista como é o caso.
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Verdade: trata-se de um realismo atravessado por sonhos, fantasias, devaneios e a confusão de sentimentos de que se compõe uma vida familiar como aquela. Com tantas fissuras, é a forma do casamento monogâmico idealizado que cai em pedaços. A queda, referida no título, pode não ser apenas aquela que matou o escritor frustrado Samuel. Pode ser, também, e talvez em especial, a caída de velhos ideais que não mais se sustentam no frágil tecido das sociedades contemporâneas.
Tampouco sai ilesa a Justiça e o ritual dos tribunais. Ao contrário da maior parte dos dramas de tribunal vistos no cinema, este é bastante crítico. Advogados, promotores, juízes são vistos em suas fragilidades. Mas não se trata apenas disso, da fraqueza humana em absolver ou condenar o próximo.
O próprio ritual da justiça é visto como uma peça de teatro, com texto frágil e elenco de qualidade duvidosa. À falta de provas materiais e conclusivas, todos os argumentos para condenar ou absolver parecem servir. Desde os ditados pela razão como aqueles movidos por preconceitos e ideias absurdas que não mais deveriam ser convocadas a serviço de qualquer causa.
Anatomia de uma relação vencida, autópsia de ilusões perdidas no tempo e no espaço, o filme de Justine Triet mostra por que mereceu sua Palma de Ouro. Obra de talento e sem concessões.
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