Em meados dos anos 1940, Vinicius de Moraes ouviu do garoto Pedro, um de seus cinco filhos, o único homem, uma pergunta sobre o que era ser poeta. Para tentar explicar ao menino a profissão que exercia, Vinicius começou a escrever poemas infantis. Os textos só chegaram ao público nos anos 1970, quando foram reunidos sob o título de A Arca de Noé. Dez anos depois, musicados em sua maioria por Toquinho, viraram canções que foram gravadas nos discos A Arca de Noé 1 e 2. Um sucesso na época, com participações de Elis Regina, Milton Nascimento, Chico Buarque, MPB4, Clara Nunes, entre outros.
A Arca de Noé, agora, inspira o longa de animação em 3D Arca de Noé, de Sérgio Machado e Alois Di Leo, que chega aos cinemas nesta quinta-feira, 7 de novembro. Mais uma vez, os poemas que falam sobre pato, leão, cachorrinha, corujinha, galinha d’angola e outros animais são um meio de aproximar as crianças de Vinicius de Moraes.
O roteiro do longa segue a ideia de que um dilúvio vai atingir a Terra. Noé recebe a missão de construir um arca para salvar os animais da extinção. Não há qualquer conotação religiosa no filme.
O pulo do gato, mantendo-se no tema dos animais da Arca original, é a ideia de colocar dois simpáticos ratinhos como protagonistas - além de Machado, o roteiro foi escrito pelas atrizes Heloisa Périssé e Ingrid Guimarães. Eles são Tom e Vini, clara referência à dupla Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Tom tem um grande topete, como o maestro, e é um tanto quanto metódico. Vini é mais baixo e mais gordinho. Gosta de usar o diminutivo e chama o parceiro de Tomzinho. O primeiro é dublado por Marcelo Adnet; o segundo, por Rodrigo Santoro.
O drama fica por conta do dilema na hora de entrar na arca. Deus, voz de Seu Jorge, foi bem claro: só vai na embarcação um casal de cada espécie, formado obrigatoriamente por um macho e uma fêmea. Os parceiros, então, precisam se separar.
Arca de Noé, já apontada como a maior animação em 3D já produzida no Brasil - o filme foi realizado em parceria com os Estados Unidos e Índia- , tem como principal mensagem a amizade, algo que Vinicius celebrou a vida toda, primeiro com Tom e, depois, com Toquinho, injustamente não representado de alguma maneira no longa - poderá estar na sequência para os cinemas ou na série para o streaming, já anunciadas pelos produtores Caio e Fabio Gullane.
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Para muito além de uma fábula infantil e de uma animação primorosa, Arca de Noé tem texto e subtextos inteligentes capazes de prender a atenção também de adultos. Vini, em certo momento, é chamado por uma cucaracha de “boêmio e vagabundo”. Ora, e não foi esse o argumento usado pela ditadura militar brasileira para afastar Vinicius do Itamaraty? Além de deixá-lo livre para exercer sua profissão no palco, a atitude autoritária foi ressignificada no lindo Samba Para Vinicius, parceria de Chico Buarque e Toquinho.
O verborrágico leão Baruk, irresistivelmente dublado por Lázaro Ramos, usa e abusa de neologismos, tal qual Odorico Paraguçu, político criado pelo dramaturgo Dias Gomes. Uma inspiração? Sim, admite o diretor Sérgio Machado ao Estadão. “Queria que ele fosse um tirano. Poderia ser (Donald) Trump, por exemplo”, diz.
A referência não é à toa. É de Vinicius e Toquinho a trilha da novela O Bem-Amado, onde há o personagem Odorico Paraguaçu. Nela, Vinicius foi vítima de um déspota que censurou uma de suas canções só porque ele escreveu, em 1973: “estamos trancados no paiol de pólvora”.
“São camadas. A aventura, as cores, os bichos e algumas piadas são para o público infanto-juvenil. Mas existem muitas outas que as crianças não vão perceber, mas os pais vão. E nós pensamos nisso”, disse Santoro ao Estadão.
Vai ser pela criatividade e pela união que os ratinhos Tom, Vini e a corajosa ratinha Nina, voz de Alice Braga, irão superar os mandos e desmandos do leão Baruk. A música faz parte da estratégia. Eles deixam o “rei” nu. As mulheres, aliás, têm papel fundamental na trama. A carinhosa e destemida menina Susaninha, dublada pela atriz mirim Rihana, está para o bem, assim como Baleia, com voz de Débora Nascimento, e Pomba Sônia, feita por Ingrid Guimarães.
Machado chama atenção pela anarquia presente na obra infantil de Vinicius. “São poemas que, na verdade, não se comunicam (no livro e nos discos). São bichos não heróis. É o pato pateta que derruba a tigela. São atrapalhados e fuleiros. Essa brasilidade está no filme”, diz.
Em tempo: Susaninha é uma homenagem à cineasta Susana de Moraes (1940-2015), filha mais velha de Vinicius e responsável por gerir a obra do poeta enquanto esteve viva. Foi dela a ideia de levar A Arca de Noé para as telas. Procurou primeiro o diretor Walter Salles, que confiou a tarefa ao diretor Sérgio Machado, de filmes como Cidade Baixa (2005) e A Luta do Século (2016). Salles ficou com o cargo de supervisor artístico.
Arca de Noé levou cerca de cinco anos para ficar pronto e tem uma versão em inglês - Marcelo Adnet e Rodrigo Santoro também fazem as vozes no idioma. Estreia no Brasil com mais de mil cópias e irá para 70 países, entre eles, Portugal, França, Espanha e Vietnã. A trilha sonora, que tem nomes como Adriana Calcanhotto, Céu, BaianaSystem, entre outros, será disponibilizada nas plataformas digitais.
Tudo grandioso. Assim como foi Vinicius de Moraes.
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