‘Argentina, 1985′ relembra julgamento histórico com Darín e linguagem acessível

‘Não podemos nos esquecer que a ditadura entre 1976 e 1983 deixou como saldo muita dor, feridas abertas que não cicatrizaram. Muita gente sofreu demais’, diz ator ao Estadão

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Por Mariane Morisawa

Santiago Mitre era um menininho quando a última ditadura civil-militar argentina acabou. Mas ele cresceu ouvindo as histórias do Julgamento das Juntas, que, em 1985, colocou nove comandantes militares no banco dos réus. Foi o maior julgamento civil de crimes cometidos por um regime desde Nuremberg.

Vindo de uma família que teve ministros de Estado e foi bastante ativa na política, Mitre sempre quis ser cineasta. E fazia tempo que achava que aquele julgamento daria um filme. “O que eles fizeram foi extremamente arriscado”, disse o cineasta em entrevista ao Estadão, durante o Festival de Veneza, onde seu Argentina, 1985 foi ovacionado e recebeu o prêmio de melhor longa da competição da Federação Internacional de Críticos de Cinema.

Cena do filme 'Argentina, 1985'. Amazon Studios via AP Foto: Amazon Studios via AP

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Mitre referia-se ao governo de Raúl Alfonsín, o primeiro da redemocratização, que determinou a investigação dos crimes logo ao assumir, em dezembro de 1983. “A ditadura tinha acabado fazia um ano, os militares ainda eram fortes e poderosos. A democracia era bastante frágil.” A produção, que é candidata da Argentina a uma vaga no Oscar de filme internacional, chega ao Prime Video na sexta (21).

Amigo de Ricardo Darín, com quem fez A Cordilheira (2017), Mitre um dia comentou sua ideia de dirigir um filme baseado no julgamento. O ator reagiu, meio brincando, que então ia interpretar Julio Strassera, o promotor que liderou o caso, ao lado de seu assistente Luis Moreno Ocampo. Mas assim acabou sendo, com Darín atuando também como produtor executivo e participando de todas as etapas – e dando show, como sempre, inclusive na conclusão da acusação de Strassera, um discurso de 12 minutos.

“O julgamento foi muito importante”, disse o ator ao Estadão. “Certamente para a democracia, mas também em termos humanos. Não podemos nos esquecer que a ditadura entre 1976 e 1983 deixou como saldo muita dor, feridas abertas que não cicatrizaram. Muita gente sofreu demais, não só pelas perdas, mas também pela incerteza.”

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Naquele momento, a sociedade argentina não tinha dimensão do que haviam sido aqueles sete anos. “Ninguém sabia muito bem o que estava acontecendo, a não ser quem era militante”, disse a atriz Alejandra Flechner, que faz Silvia, a mulher de Strassera. Havia censura, além de uma demonização daqueles que lutavam pela democracia.

“O julgamento foi um espelho onde a maioria da sociedade se inteirou do que tinha se passado”, completou Flechner. A investigação, que foi curta, conseguiu o depoimento de centenas de pessoas, provando o uso sistemático, por todo o país, de sequestros, encarceramentos, torturas, estupros, assassinatos e ocultações de cadáveres, sem que houvesse um processo jurídico. Estimam-se mais de 30 mil desaparecidos.

Em tempo real

Durante o julgamento, os argentinos acompanharam por meses, nas capas de jornais e na televisão, os depoimentos dos sobreviventes e dos familiares de mortos e desaparecidos, como mães que só queriam saber o paradeiro de seus filhos, ou mulheres grávidas que tiveram seus bebês algemados e vendados. “As pessoas que não queriam enxergar aquilo perceberam que não tinham como não ver”, disse Mitre.

A história não se move em linha reta. Depois do julgamento pioneiro, leis tentaram parar o processo e absolver quem tinha sido condenado. Mas a Suprema Corte e governos mais recentes declararam que era preciso continuar. As investigações e julgamentos prosseguem. A sociedade argentina também estabeleceu que 24 de março, o dia do golpe militar que derrubou o governo de Isabel Perón, seja um dia de luta pela memória, a verdade, a justiça, a democracia.

Para Darín, o julgamento ajudou o país emocionalmente. “As pessoas acreditaram que há esperança de viver de outra maneira”, disse. Por isso, não vê riscos de que o horror se repita. “Creio que não. Tomara que não esteja equivocado.”

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Público amplo

O diretor tem menos certeza disso. “Eu estou preocupado com os tempos em que vivemos”, afirmou. “Vejo muitos jovens que não sabem nada da ditadura, desse julgamento.” Por isso, quis que Argentina, 1985 fosse acessível, começando com uma cena cômica entre Strassera, seu filho e sua mulher.

Cena do filme 'Argentina, 1985'. Amazon Studios via AP Foto: Amazon Studios via AP

“Usamos a comédia para derrubar a parede, para falar para quem tem medo de um filme sobre a ditadura: Relaxe”, disse Mitre, que permeia a história de humor. A estrutura é clássica, sem complicações. “O longa precisava conversar com um público mais amplo, não só na Argentina, como no mundo todo.” Em seu país de origem, a obra levou mais de 600 mil pessoas aos cinemas em duas semanas em cartaz.

A recepção em Veneza também foi calorosa. “É bonito porque parece que pessoas de outros países sentem que aquele julgamento foi uma vitória de todos”, disse Peter Lanzani, que faz Luis Moreno Ocampo. “E elas entendem que o filme não trata de política, mas de humanidade. E me parece que falta um pouco de humanidade no mundo.”

Ricardo Darín concordou. “O filme não tem partido político. É humano e fala de resgatar a dignidade, a verdade e a justiça, que me parecem os valores mais fundamentais.”

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