O jornalista e escritor Pablo Vierci, de 73 anos, tinha 22 quando seus amigos de infância e companheiros de rugby sumiram por 72 dias no acidente de avião na Cordilheira dos Andes, em 1972. Com 45 pessoas a bordo, a aeronave se chocou com uma montanha e quebrou em duas partes. Da colisão, 29 sobreviveram em um limbo entre a vida e a morte enquanto criavam novas formas de viver no topo da montanha. Comendo os restos mortais de amigos e conhecidos, 16 passageiros voltaram vivos para casa.
Autor do livro A Sociedade da Neve, que deu origem ao filme da Netflix, Pablo Vierci conta ao Estadão que tinha uma relação muito próxima com as vítimas. Estudaram juntos na escola desde os cinco anos e moravam no mesmo bairro. Depois, eram companheiros do time de rugby — mas ele nunca pensou em embarcar no avião por motivos distintos. Contudo, lembra perfeitamente onde estava quando soube que dois de seus parceiros de vida estavam vivos — Roberto Canessa e Nando Parrado. Por cerca de 10 dias, foram eles que caminharam do topo da montanha até abaixo e conseguiram ajuda.
“Quando escutei a primeira vez que tinham dois vivos, eu estava estudando com um amigo. Quando anunciavam a lista dos sobreviventes pelo rádio, me tranquei no quarto, abri uma janela que dava para um jardim com umas hortênsias. Era 21 ou 22 de dezembro (sic). Quando encostei em uma cama porque ia escutar quem eram os 16 sobreviventes, foi o momento mais agridoce que vivi. Nunca esquecerei disso. Era a justiça e a injustiça, a inquietação e a alegria, o choro e a risada. Tudo junto”, relembrou ele.
Antes disso, o clima no bairro dividia os moradores em três grupos: o que acreditavam na sobrevivência dos jovens; os que juravam que eles estavam mortos; e os que não faziam ideia do que aconteceu. Depois do acidente, Pablo viu os amigos pela primeira vez em uma coletiva de imprensa na quadra de um colégio de Montevidéu.
Atrás do palco e com jornalistas do mundo inteiro, ele observou os sobreviventes. “Era como se eles estivessem em uma bolha: estavam em um plano de consciência diferente do nosso. Estavam em uma bolha que não era a sociedade da neve, mas também não era a sociedade da planície. Uma bolha que, pouco a pouco, ia se dissipando e se integrando. É subjetivo, mas para mim eles pareciam estar em uma jornada, perto da gente, mas um pouco distantes e perto da montanha.”
Os sobreviventes se adaptaram para superar o frio extremo, as avalanches de neve, as infecções, a fome e a sede. Amontoavam-se uns em cima dos outros para dormir no que havia sobrado do avião, mas só cochilavam para não diminuir a temperatura corporal. Derretiam neve para beber água. Separavam as carnes humanas e as compartilhavam. Além de tudo, eram a força uns dos outros para aguentar aquela situação extrema que, segundo Pablo, mostrou o melhor do ser humano: a generosidade.
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‘Fiquei atônito quando soube como eles sobreviveram’
Em seu livro A Sociedade da Neve, a frase “nos permita viver representados por vocês” mostra como o trabalho em equipe e a generosidade de quem permitiu que sua carne servisse de alimento foi essencial para a sobrevivência. Pablo, inclusive, sempre destaca nas entrevistas que “16 sobreviveram porque 29 morreram”.
Para ele, o trabalho em equipe dos passageiros foi um “pacto de entrega mútua”, no qual cada um desempenhava um papel diferente para todos sobreviverem na montanha. O pacto, inclusive, foi a atitude dos amigos que mais o surpreendeu. “Fiquei atônito quando soube como eles sobreviveram. As palavras que disse foram: ‘Que inteligente e generoso’. Também me chamou a atenção, mas não me surpreendeu, o fato de eles não perderem a força, como dizem eles, já que o mais fácil era morrer”, pontuou.
A nova edição do livro é a mais vendida da Amazon; o filme ficou como o mais assistido da Netflix. Mesmo assim, Pablo garante que o sucesso da história não se deve somente a ele, mas a um trabalho de equipe de todos os envolvidos — seja na produção, nas telas ou com os depoimentos dos 16 sobreviventes. Em um colégio só para meninos, o autor conta que relatar o ocorrido foi, na verdade, um trabalho que “sobrou” para ele.
“Não tenho nenhuma virtude especial para contar essa história, mas não tenho substituto. É uma sensação que tenho desde 1972, quando eles voltaram. Eu me perguntava: ‘Quem mais vai contar essa história se ninguém gosta de escrever?’. Só dois de nós gostávamos. Tinha um que tinha a minha idade e era de uma turma abaixo da minha, mas quatro amigos dele morreram nos Andes e três em outro acidente três anos antes. No total, sete amigos dele morreram. Então, esse menino, que também gostava de escrever, teve um bloqueio — e eu queria falar da história. Sobrou eu”, conta ele.
Pablo escreveu uma série de matérias sobre o acidente quando trabalhava como jornalista. O processo de produção do livro A Sociedade da Neve, no entanto, só começou 33 anos após o acidente, em 2005, e terminou em 2008, ano da publicação da obra.
“Nenhum dos sobreviventes queria falar sobre o acidente. Falar implicava no sofrimento das famílias daqueles que não voltaram. Ou seja, imagina em um mesmo bairro, 16 vivos e 29 mortos. Era tragédia e celebração simultânea”, comenta sobre a dificuldade de escrever o livro.
O primeiro contato do autor com o diretor do filme, Juan Antonio Bayona, aconteceu em 2011. Na nova edição do livro, Pablo disponibilizou uma carta que o cineasta enviou contando sua relação com a história do acidente dos Andes. Eles só se conheceram em 2017, em Londres, na Inglaterra — cerca de um ano após o início da produção de A Sociedade da Neve, em 2016, no qual Pablo é produtor.
“Descobri A Sociedade da Neve durante um longo processo de documentação para as filmagens do meu filme anterior, intitulado O Impossível. (...) O Impossível foi influenciado no seu relato na medida em que todas as experiências extremas e profundas se tocam”, dizia Bayona em trecho da carta.
Na visão de Pablo, a história é um ensinamento transcendental, que merece ser contada e repassada, sobre um tema subjetivo: a força humana, a generosidade, a esperança, a fé e a bondade. A hipótese do escritor e produtor do filme da Netflix sobre o sucesso do longa se baseia nessa ideia.
“Há uma necessidade de encontrar um sentido humanístico e transcendente para a nossa existência. Este é um exemplo que nos mostra uma visão humana, generosa e compassiva do ser humano. Não podemos continuar sendo apenas um grupo de terroristas, como o Hamas, que mata e rapta. Isso não é vida, isso é uma perversão. A sociedade que eles [os sobreviventes] criam nega a ideia de que o homem é o lobo do homem, como dizia Thomas Hobbes. O mundo se interessa por essa história porque está se reconciliando consigo mesmo”, explica.
Agora, Pablo Vierci foca nas mudanças comportamentais e no impacto que o filme causa nos espectadores. Depois de publicar matérias, livros e lançar um longa-metragem sobre a sociedade da neve, ele garante que a história não acabou. A produção da obra, inclusive, ganhará um documentário na Netflix. “Não sei se vou seguir tratando desse assunto, mas sei que essa história não tem um fim”, finalizou.
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