Análise | Balanço de Cannes 2024: Filme mostra como terror da realidade supera a ficção

Festival tenta manter o prestígio recuperado após mostrar as tendências do Oscar de 2024 a partir da edição do ano passado. Será que a programação tem força o bastante para repetir o feito?

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CANNES - E, no último dia do Festival de Cannes, veio o iraniano Mohammad Rasoulof, que já venceu o Urso de Ouro na Berlinale com O Mal não Existe. As estatísticas mostram que a maioria dos vencedores de Palma de Ouro são exibidos nos últimos dias, e no último dia do festival. The Seed of the Sacred Fig veio confirmar a regra. Habemus Palma, mas é antecipar-se à premiação que ocorrerá neste sábado, 25, à noite, 20h na França, 15h no Brasil.

Karim Aïnouz e elenco de 'Motel Destino' receberam longa ovação após a exibição, mas são considerados aazarões na corrida pelo prêmio principal  Foto: Yara Nardi/REUTERS

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A palavra final será de Mme. La Présidente, Greta Gerwig, e de seu júri integrado por Hirokazu Kore-eda, Nadine LAbaki, Omar Sy.

Nos últimos anos, Cannes vinha perdendo espaço para os festivais que se realizam no segundo semestre, especialmente Veneza, que havia virado o queridinho dos produtores de Hollywood. Com a proximidade do Oscar eles se beneficiavam da vitrine do Lido para tentar emplacar seus filmes nas indicações para os prêmios da Academia.

Mas, este ano algo se passou e o Oscar premiou importantes vencedores de Cannes no ano passado, como Anatomia de Uma Queda, Zona de Interesse. Para Cannes, e para Thierry Frémaux, que organiza a seleção oficial, virou uma questão de honra repetir o feito, ainda mais que este ano marcou o início de uma nova presidência do evento - Iris Knobloch, com certeza, quer mostrar resultados. Thiérry também. Afinal essa está sendo a sua 25ª seleção. Ninguém durou tanto no cargo como ele nesses 77 anos de Cannes.

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Nove entre dez jornalistas de cinema – críticos – dirão que a seleção de 2024 foi mais pop. Outros que Frémaux aposentou seus velhos, com exceções. Apostou numa geração intermediária, autores não tão novos, mas que já integraram a seleção oficial anteriormente. E como a presidência está sendo exercida por uma mulher, Greta Gerwig, diretora de Barbie, aumentou um pouco (bem pouco) a representatividade de gênero. Quatro diretoras num total de 23 filmes representam cerca de um sexto da concorrência à Palma.

Pelo menos duas (Andrea Arnold, de Bird, e Coralie Fargeat, de The Substance) polarizaram os votos nos quadros de cotações das revistas especializadas que publicam edições diárias durante o festival – Le Film Français, Variety, Screen, The Hollywood Reporter. Mas o maior número de Palmas – a cotação máxima – segue sendo em filmes dirigidos por homens – Emilia Pérez, de Jacques Audiard, Caught by Tides, de Jia Zhangke, Anora, de Sean Baker.

Como reagir quando as mulheres mais empoderadas da competição encontram-se num filme dirigido por um homem, e é o de Rasoulef?

Motel Destino, de Karim Aïnouz, apesar dos 12 minutos de aplausos na sessão oficial, teve apenas uma Palma, da revista francesa Telérama, em meio a um mar de cotações que o colocam como ‘bom’, senão ‘mediano’. Os mais simpáticos ao filme elogiam o clima erótico, a intensidade do desejo. Reprova-se, em Karim, o que está sendo definido como superficialidade. De parte da crítica, há pouca expectativa quanto a uma possível premiação. Seria uma surpresa, e tanto. Talvez o fator divisor dessa seleção seja uma fratura no conceito de realismo social praticado por diretores que sempre se deram bem na Croisette – Ken Loach, os irmãos Dardenne.

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A britânica Andrea Arnold com frequência integra a seleção, mas, mais do que qualquer de seus filmes anteriores selecionados, Bird consagra a tendência. Relações familiares, um pai jovem de filhos adolescentes. Habitam o bairro proletário de uma cidade balneária – Kent – da Irlanda. Os conflitos (pobreza, desamor) parecem sem solução, mas aí intervém o fantástico. O filme é atravessado por pássaros. A garota olha para o céu e vê no movimento deles o próprio desejo de voar, de evadir-se. Tem um namoradinho, Bird, que será, no limite, o Birdman dessa história.

Esse desejo de evasão percorre outros filmes. Outra garota, a de Diamante Bruto, de Agathe Reidinger, sonha participar de um reality show e virar celebridade. A beleza será seu passaporte para superpor-se à miséria de seu meio social.

A beleza também é a questão central de The Substance. Demi Moore, que, na ótica de Hollywood, é uma estrela ‘has been’, faz o próprio papel. É demitido do show que apresenta por um produtor (Dennis Quaid), que parte do princípio de que o público quer sangue novo. Demi vende a alma ao Diabo, participando de um programa experimental – a tal Substância. Como em Vampiros de Almas, sai de dentro dela uma clone, jovem e bela, que a substitui na TV. Mas a garota não cumpre os protocolos da experiência e as duas sofrem as consequências. A busca da beleza vira horror. O Médico e o Monstro, O Retrato de Dorian Grey. Estaria tudo bem se Coralie, a diretora, não adotasse o receituário do mau-gosto festivaleiro, seguindo a trilha de Julia Ducorneau, que, como se sabe, ganhou a Palma com Titane.

Como representante do cinema de gênero, The Substance virou o preferido da crítica mais jovem para ganhar o prêmio máximo. Os mais velhos, já que se trata de horror, horrorizam-se com os excessos, e redundâncias, da meia-hora final.

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Emma Stone voltaa trabalhar com Yorgos Lanthimos, de 'Pobres Criaturas'  Foto: Daniel Cole/Daniel Cole/Invision/AP

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Outro preferido da crítica jovem – o grego Yorgos Lanthimos – volta a Cannes depois de dois triunfos em Veneza, A Favorita e Pobres Criaturas, agora com um filme em episódios, contando três histórias interpretadas pelo mesmo elenco, incluindo dois atores fieis – Emma Stone e Willem Dafoe. Relatos selvagens, variados tipos de aberrações, a primeira história até que é competente, mas depois é a descida da montanha russa.

Mais horror em The Girl With the Needle, de Magnus Van Horn, uma cria da estética neoexpressionista de Lanthimos. Após a 1ª Guerra, uma mulher cujo marido está no front engravida de um aristocrata dominado pela mãe e termina envolvendo-se com outra mulher que mata bebês. O marido que voltou sem rosto – sim! – da guerra é o único dotado de empatia humana nessa história de monstros, e atrocidades.

Francis Ford Coppola empenhou sua vinícola para financiar, do próprio bolso, o filme com que sonhava há 30 anos. Apesar da beleza visual e de algumas inovações estéticas – à O Fundo do Coração -, o filme metaforiza a queda do Império Romano, transformando Nova York em Nova Roma, onde o arquiteto Adam Driver tenta construir a cidade futura, ideal, enredando-se em jogos de poder. É, rapaz, não é todo mundo que nasce Marlon Brando ou Robert De Niro para virar poderoso chefão. Um eventual prêmio para Megalopolis só se explicará em reconhecimento à carreira do grande Coppola, ou como ajuda para que ele continue produzindo seus vinhos.

Francis Ford Coppola (à dir.) financiou do próprio bolso o filme Megalopolis, protagonizado por Adam Driver, ao seu lado Foto: Valery Hache/VALERY HACHE

Coppola dedica Megalopolis à mulher, Eleanor, que morreu em abril. David Cronenberg também perdeu a mulher e tenta expiar o luto em The Shrouds. Vincent Cassel, que não é parecido com ele, mas ficou igual graças ao corte de cabelo, à postura e uma certa perda de massa física, possui o cemitério onde está enterrada sua mulher. Por meio de um dispositivo eletrônico instalado na cova, pode acompanhar a deterioração do cadáver da falecida. Puro Cronenberg, mas a inspiração foi-se.

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Vencedor do prêmio de interpretação em Berlim, em fevereiro, Sebastian Stan é uma aposta para repetir o troféu, agora por sua interpretação como o jovem Donald Trump, de Ali Abbasi. Trump virou o que é pela influência de dois pais, o biológico, e seu mentor, Roy Cohn, que surgiu no macarthismo, escondeu a vida toda a homossexualidade e termina vítima da aids, como sabe quem viu Anjos na América. Melhor, até, do que Stan é Jeremy Strong, que faz Cohn. O Trump de Abbasi é o típico homem que não sabe amar, exceto a si mesmo. Como psicanálise, é elementar. Como cinema, médio.

Ben Whishaw é outro aspirante a melhor ator como o dissidente russo de Limonov, de Kirill Serebrennikov. O cara consegue migrar nos EUA, perder-se em Nova York, mas volta ao império fraturado para fundar um partido de extrema-direita que, o filme não mostra, praticou atrocidades na Guerra do Donbass. Tem um plano sequência elaborado, e maravilhoso, só.

Jia Zhangke segue com sua investigação sobre as mudanças na China. Adapta-as para o tempo da pandemia em Caught by Tides. Apesar de belas cenas – uma certa corrida -, parece um tanto cansado, senão repetitivo. Paolo Sorrentino vale-se de uma bela mulher – a jovem Celeste Dalla Porta – para discutir o que é a etnografia em Parthenope. O filme também tem seus momentos, mas, apesar de uma certa grandiosidade, não vai muito além do básico. Uma mulher que não sabe amar.

Até a sexta, e a chegada de Rasoulof, havia uma acirrada disputa entre The Substance e o musical de Jacques Audiard, Emilia Pérez. Questões identitárias atravessam a obra do diretor, mas nunca como aqui. Um poderoso chefão do narcotráfico quer mudar radicalmente de vida. Seria necessário todo o espaço desse texto para dar conta das reviravoltas da trama, e de gêneros, cinematográficos, e não apenas. Emilia Pérez seria – seria – um bom, senão grande vencedor da Palma. Greta e seu júri ainda podem fazer história premiando a espetacular Karla Sofía Gascón, que seria a primeira mulher atriz trans a vencer o Festival de Cannes.

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Senão, o troféu caberia muito bem a Mikey Madison, protagonista de Anora, de Sean Baker. É outro dos grandes filmes dessa edição. A história da stripper americana que se envolve com o herdeiro de um oligarca russo. Casam-se, e a família do rapaz vem para estragar a festa. A mais improvável das histórias de amor, não com o herdeiro. Há redenção para os dejetos humanos do capitalismo.

Um dos maiores filmes dessa edição, e talvez o maior – Grand Tour, do português Miguel Gomes -, foge a qualquer parâmetro de narração hollywoodiana. A estrutura romanesca, o ponto de vista do homem e o da mulher, a implosão da temporalidade – o filme de época passa-se em cenários contemporâneos -, tudo em Grand Tour desafia cânones. Seria uma bela surpresa, mas surpresa será se The Seed of the Sacred Fig não levar o prêmio máximo. Para quem queria horror, o filme tem o da realidade. Feminismo? Logo no começo, o casal, marido e mulher, comemora a promoção dele a investigador dos tribunais revolucionários do Irã.

O próximo passo da evolução poderá ser para juiz. Mas logo, num país em processo de convulsão, começam os problemas, e dentro da casa. As filhas estão conectadas no mundo via redes sociais. O pai invoca Deus. Todo o horror – a brutalidade da repressão – é obra dos inimigos de Deus. Rasoulof fez um filme tenso, assustador. Toda a gosma de The Substance não vale a cena na qual a mãe trata a ferida de uma amiga das filhas. Aqui não há fantástico, o horror da realidade supera o da ficção. Há uma subtrama sobre uma arma que desaparece. O pai, sentindo-se ameaçado, enlouquece. As mulheres da família, unidas, jamais serão vencidas. A Semente da Figueira Sagrada levará? A resposta, no sábado à noite.

Mas cabe um acréscimo. Depois de 30 anos de ausência, a Índia voltou à competição de Cannes, e com um filme dirigido por uma mulher. Uma enfermeira e as demais vidas cruzadas num hospital. Payal Kapadia poderá muito bem entrar nas considerações do júri, nem que sejas pelo título de seu filme. All We Imagine is Light. Tudo o que imaginamos é luz. É uma bela definição do cinema.

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Análise por Luiz Carlos Merten
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