Foi após o sucesso de Cidade de Deus que produtores brasileiros descobriram uma mina de ouro: o favela movie. Filme de favela. Sobre a favela. Veio uma infinidade de produções, indo desde Tropa de Elite, passando por Alemão até chegar em produções boas, mas pouco comentadas, como Pacificado. Agora, uma nova estreia traz não apenas um olhar diferente do que estamos acostumados, mas com um novo visual: Bandida: A Número Um.
O longa, que está em cartaz, é inspirado no livro homônimo, assinado por Raquel de Oliveira, mulher que se tornou líder do tráfico de um morro carioca após passar por diferentes fases da criminalidade do Rio – como a “filha” de um bicheiro, que a comprou da avó, primeira-dama do chefão do tráfico e, por fim, se tornando a toda-poderosa do morro.
No filme, porém, Raquel é Rebeca. E, pelos olhos do cineasta João Wainer, ganha tons levemente fantasiosos, mas que colocam o filme em um patamar mais interessante do tal favela movie. “É lógico que a gente admitiu algumas concessões na história. Não tem história real de uma bandida que sai atirando no meio de uma fumaça rosa”, diz o diretor, citando uma cena de abertura do filme, com Rebeca (Maria Bomani) enfrentando a polícia.
Essa fumaça rosa, que toma conta da tela logo no início, não é o único elemento visual que tira Bandida do lugar-comum do favela movie. O visual como um todo é mais ousado e criativo – alguns podem remeter à estética dos videoclipes, mas há algo mais interessante.
Em alguns momentos, Wainer coloca uma câmera auxiliar com imagem granulada, de tom analógico. “Foi uma aposta, uma tentativa. Às vezes, vejo muitos filmes que parecem feitos pelo mesmo fotógrafo. Há uma estética uniforme”, diz o cineasta. “Com este filme, tivemos liberdade para experimentar, e eu decidi arriscar. Prefiro errar tentando algo novo do que acertar fazendo o convencional. Pesamos a mão na estética, na atuação, na montagem”.
Além do visual
Engana-se, porém, quem pensa que Bandida: A Número Um acerta apenas nas cores, na fotografia, no visual. O filme dá uma folga na testosterona exagerada de Tropa de Elite e afins para contar a história de uma mulher que, no mundo da criminalidade, cresceu e mostrou a que veio. Na coletiva de imprensa do longa-metragem, Raquel – a mulher que inspirou essa história toda – contou como a experiência com o filme foi muito importante.
Afinal, mais do que mostrar uma personagem sem coração no topo do morro, Bandida traz inclusive uma história de amor potente entre ela e Pará (Jean Amorim), rapaz do morro que começa da base, sem saber nada desse universo, e cresce até a liderança do tráfico.
“Sou uma mulher sobrevivente”, resumiu Raquel. “O tráfico é um atravessamento na vida das pessoas. Esse filme não criou heróis, heroínas. Mostrou pessoas e humanizou uma situação. Se a gente tivesse olhado assim para essas pessoas lá atrás, não seria assim”.
Essa humanização dos personagens, aliás, passa pelo interesse de Jean Amorim em fazer o par romântico de Rebeca. “É um personagem fora do estereótipo. Minha construção do Pará foi justamente tentar humanizar esses personagens. É muito fácil ver um moleque com uma arma na mão na periferia ou roubando na rua e rotulá-lo como ladrão, traficante, bandido, e chamar a polícia. Mas precisamos entender o antes dessa molecada”, diz o ator. “Tentei mostrar que ele não nasceu bandido, ele foi caminhando até chegar nesse ponto”.
E Maria? A atriz e cantora tomou um tempo para si depois de participar como camarote do Big Brother Brasil, da Rede Globo, em 2023, e ser eliminada após uma brincadeira com um balde. Agora, retorna em grande estilo como uma protagonista que convence. “Quando comecei a entender a história por trás, buscar informações sobre Raquel, fiquei muito interessada na personagem”, continua Maria. “Ela era complexa, não apenas uma bandida segurando um fuzil, como geralmente as pessoas pensam. Ela tinha várias camadas”.
No final, essa soma de fatores – o visual, a história de uma mulher e a pessoa por trás do bandido – parece abrir um novo caminho para os realizadores do favela movie. Uma nova estética, talvez. Uma nova opção indo além de Capitão Nascimento, Zé Pequeno e afins.
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“O favela movie banaliza por conta desse estereótipo. Todos querem ser Zé Pequeno, mas, para cada Zé Pequeno, existem 50 Parás, moleques que estão na vida do crime por falta de opções, não por escolha”, explica Jean, citando o personagem de Cidade de Deus.
Maria finaliza a conversa dizendo que é preciso ir além da visão do morro de fora. “Ultrapassar a fachada da favela é essencial”, diz. “Muitas vezes, filmamos de fora, e é importante ter uma perspectiva interna. Muita gente fala sobre favela sem nunca ter pisado em uma. A indústria cinematográfica também é assim; quem produz esses filmes muitas vezes não conhece a realidade da comunidade. Quando vemos o resultado final, as pessoas se impressionam com a violência, mas não entendem o que levou aquele moleque a cometer o crime. A maioria não tem coragem de fazer isso. O filme mostra que, apesar do crime, o foco está na humanidade e nas histórias pessoais dos personagens”.
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