CANNES, França – No filme Annette, de Leos Carax, uma ópera-rock opera deliciosamente louca, Adam Driver canta em lugares muito estranhos. Numa motocicleta. No mar. No meio de uma transa.
Annette causou sensação no 74º Festival de Cinema de Cannes, onde estreou na noite de abertura do evento, e as reações foram variadas. Como era de suspeitar, as opiniões, diferentes, sobre o musical de 140 minutos, surreal, mas honesto, um melodrama elaborado com trilha sonora de Sparks (o duo pop Ron e Russell Mael) e tendo como estrela coadjuvante um bebê convertido numa marionete.
Mas em Annette, Adam Driver mostra como realmente é bom. Até extraordinário. Para um ator propenso a mergulhar plenamente na visão dos cineastas, talvez este seja um novo apogeu de um envolvimento rigoroso. Até mesmo nas cenas mais inusitadas de Annette ele se mostra extremamente dedicado e intensamente físico. E aqueles lugares mais incomuns para música, como no meio do sexo oral? Outra nova experiência.
“Foi uma sensação singular”, diz o ator. “Tipo, ‘não quero fazer isso de novo’ – e então ele ri – ‘provavelmente não’”.
Adam Driver esteve rapidamente em Cannes. Imediatamente depois de compartilhar um cigarro com Carax durante os aplausos, ele retornou aos Estados Unidos para continuar a filmagem de White Noise, em Ohio, com Noah Baumbach. Mas algumas horas antes da estreia concedeu uma entrevista no balcão de um hotel fora da Croisette de Cannes. Sua cabeça, disse, estava totalmente imersa em White Noise.
Mas Annette é algo diferente até mesmo para o eclético Driver. Ele aceitou o projeto há sete anos depois de Carax, cineasta francês de Holy Motors contatá-lo tendo visto apenas o seu trabalho em Girls.
“Vimos falando sobre este filme há sete anos. Portanto, há uma sensação de alívio saber que alguém o está assistindo em algum lugar. Estou aliviado que será lançado”, disse ele.
Annette será lançado nos cinemas em 6 de agosto e na Amazon Prime em 20 de agosto. Driver interpreta um famoso comediante de stand-up chamado Henry McHenry, que apresenta um show físico, sinistro chamado The Ape of God, usando um roupão de boxe. (Ele copiou seus movimentos dos de um gorila). Sua mulher é Anne Defrasnoux (Marion Cotillard) uma famosa cantora de ópera. Toda noite Henry “ofende” seu público enquanto Ann os salva morrendo no final de cada apresentação.
A mistura das sensibilidades de Carax e os Sparks é difícil de descrever, mas tudo em Annette é intensificado, surreal, consciente, exceto as atuações. “Mesmo se o filme dá a sensação de surreal, não consigo interpretar o surreal, diz Driver. Ron Mael disse a jornalistas em Cannes que as conversas com Carax começaram logo no início quanto ao tom do filme. “Estamos felizes em ouvir porque era uma espécie de crença compartilhada de que os personagens tinham de ser sinceros no que estavam dizendo, que nunca deveriam ser afastados. Isso é realmente importante e separado de muitos outros tipos de musicais modernos”, afirmou ele.
O filme começa com o duo Mael liderando Carax e companhia numa marcha saindo de um estúdio de gravação cantando So May We Start?;
Mas, a partir daí, as representações não indicam nada. Quando fica sombrio e a marionete Annette – abençoada com uma bela voz quando nasceu – o filme descamba para a tragédia e, talvez, o coração da Criação artística. Justin Chang, do Los Angeles Times, escreveu que o filme “pertence a Driver e ele raramente apareceu mais imponente em sua fisicalidade, mais profundo na sua capacidade para expressar a raiva e a farsa”. Eric Kohn, escrevendo no siteIndieWire, chamou Driver de uma “tresloucada força da natureza”.
Pela primeira vez, Adam Driver é produtor. Ele permaneceu com Annette mesmo que isso tenha implicado aguardar sete anos – duração do tempo da gravação de Star Wars inteiro.
“Quando alguém deseja que você faça um filme, como não fazer? É tão óbvio. Eu somente procuro fazer coisas que sejam óbvias na minha cabeça”, disse o ator. “Nem sempre sigo meu próprio conselho. Mas tem de ser muito óbvio. Quer trabalhar com os irmãos Coen? Sim, claro. Ou Scorsese onde o filme será rodado no Japão? Com certeza. Portanto, foi fácil me manter comprometido com este filme".
Driver ficou particularmente apaixonado pela fantasia Holy Motors de Carax, de 2012, que, como Annette, tem a ver com imaginação e a índole da interpretação.
“Em todos os filmes dele, parece que o ator tem tanta liberdade que se torna verdade. Ele é bom também em equilibrar isso com uma coreografia incrível. Ele gosta de selecionar a dedo detalhes de impulsos e depois repentinamente está coreografando uma dança. Quando assisto a seus filmes, eles me passam a ideia de liberdade”.
Driver tem mais facilidade para falar sobre os diretores com quem trabalha do que sobre sua própria atuação. No caso de Carax, ele descreve as observações feitas pelo diretor como ditas com suavidade, “quase um sussurro”. Depois de uma cena, ele às vezes percebe que Carax atuou junto com ele e agora parecia sem fôlego.
Driver canta quase o tempo inteiro no filme, uma atuação que segue as pegadas do seu desempenho no filme História de um Casamento, de Baumbach, indicado ao Oscar, que chega a um clímax impressionante com o personagem de Driver cantando Being Alive, de Company, de Steven Sondheim.
Antes disso, a estreia musical do ator foi mais irreverente, como parte da sessão de gravação de Please Mr. Kennedy no filme dos irmãos Coen, Inside Llewyn Davis (Balada de um Homem Comum).
“Não tenho planos e nem interesse em cantar de novo em filmes. As pessoas cantam na vida – quero dizer, explodem cantando. Mas não nos comunicamos através da música. Sob um aspecto, é mais apropriado. Tem algo de vulnerável nisso”.
Mas Driver, que foi fuzileiro naval antes de se dedicar ao trabalho de ator, não ignora as dimensões mais piradas de Annette. “Como descreve o filme para os amigos e familiares? Ele ri. “É apenas um musical de fantasia comum sobre um bebê”.
Tradução de Terezinha Martino.
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