O dia de imprensa em São Paulo de Harold e o Lápis Mágico, filme que chegou aos cinemas na última semana, foi mais de um mês antes da estreia do longa. Era a única data disponível antes que o diretor da produção, o brasileiro Carlos Saldanha, mergulhasse, literalmente, na vida de Amyr Khan Klink.
Em 15 de julho, o animador brasileiro mais conhecido – e querido - do mundo iniciou a filmagem de 100 dias. O filme vai contar como o filho de Jamil Klink tornou-se Amyr Khan, navegador e conferencista internacionalmente conhecido e como foi aquela jornada de 100 dias entre céu e mar, fazendo sozinho, num barco a remo, a travessia do Atlântico Sul.
Hoje em dia, Amyr virou ativista e escritor, e não apenas em defesa dos oceanos e do meio ambiente. Suas falas e livros visam mostrar que é possível alcançar a felicidade enfrentando, e superando, as tempestades do mar, e da vida. “O filme terá tempestade, baleia, tubarão. São ingredientes que não podem faltar”, conta o diretor.
Outro tanto de excitação, e muita magia, percorre o longa-metragem anterior de Saldanha. Embora possua sequências animadas, Harold e o Lápis Mágico situa-se num universo híbrido, com suas cenas interpretadas por atores.
Para falar sobre a experiência, Saldanha recebeu o Estadão para uma entrevista exclusiva no Museu da Imaginação, na Água Branca. Não foi mera coincidência. O livro de Crockett Johnson que deu origem ao filme chama-se Harold and the Purple Crayon, e o marketing da distribuidora descobriu um espaço tão mágico como o filme, com direito à uma vista espetacular de São Paulo e paredes coloridas, com predominância da cor... púrpura!
Por se tratar de um dia de julho, mês de férias, o Museu estava cheio de crianças, muitas delas, senão todas, tendo integrado a plateia das grandes animações de Saldanha - Rio 1 e 2, A Era do Gelo, Ferdinando.
“Conheço bem o livro (de Johnson), que é uma obra de referência de literatura infantil para os americanos. Tive muitas discussões sobre ele em encontros de pais, enquanto meus filhos ainda eram pequenos e estudavam em escolas nos EUA.” Apesar disso, Saldanha nunca pensava na história de Harold como uma possível adaptação: “Anos atrás, o projeto já me havia sido oferecido, mas eu disse não porque tinha outras prioridades no momento e também porque não sabia o filme que queria, ou poderia fazer a partir dessa história.”
As circunstâncias mudaram. O estúdio em que Saldanha trabalhava nos EUA, o Blue Sky, fechou e foi nesse momento que o produtor de Ferdinando – John Davis - voltou com a proposta para fazerem Harold e seu lápis encantado. Saldanha estava naquele momento de repensar a vida. “E, agora, o que vou fazer?” Mesmo assim, vacilou. “Eu não tinha claro qual poderia ser o conceito desse filme para mim. Por que filmar essa história? E como?”
Na ficção, Harold é um garotinho que, numa noite, resolve sair de casa para um passeio ao luar. Ele sai pela janela e, com seu lápis púrpura, vai construindo o mundo. Perde-se, e precisa voltar. Tem de atravessar uma floresta e, com medo, reduz essa floresta a uma só árvore. Tem aí algo de Saint Exupéry, o planeta do Pequeno Príncipe. “Tem, sim, é um clima muito particular, muito especial”, observa Saldanha.
A árvore é uma macieira carregadinha de frutos. Para proteger as maçãs, desenha um dragão e assusta-se. A mão com o lápis treme e, de repente, Harold está no mar, enfrentando as ondas. Para não se afogar, desenha um barco – como Amyr Klink construiu o dele. A história prossegue. Harold atravessa a montanha, a cidade, sempre em busca da janela de seu quarto. Quando consegue retornar, está exausto. Desenha a própria cama, a coberta, o lápis tomba, e ele adormece.
De ...E o Vento Levou a E.T. – O Extraterrestre, filmes míticos, o tema da volta ao lar é clássico em Hollywood. Não surpreende que o livro seja tão famoso para o pessoal de lá. “Mas é fininho, lê-se na cama quando se põe as crianças para dormir. Pensava comigo se aquilo daria filme.” Deu, e bom. Mas antes Saldanha precisou encontrar seu viés, o seu jeito de contar a história.
“É sobre a imaginação e esse transitar entre o mundo real e o imaginário”, diz o diretor. Harold cria o mundo em que se movimenta. Saldanha teve o clique. Na ficção que imaginou, Harold – adulto, interpretado pelo ator Zachary Levi, de Shazam! -, vem para o mundo real. Interfere na realidade com seu lápis, arranja amigos com quem vive movimentadas aventuras antes de voltar para o seu mundo. Mais do que uma inversão do movimento do livro, é uma sequência. E teria de ser uma live action (filme com atores reais, ao invés de animação) claro que com muita tela verde para abrigar a fantasia. Parecia uma aposta arriscada, mas o produtor topou.
“Foi meu filme mais difícil. Fiquei 17 semanas em Atlanta, filmando, longe da família, que só via nos finais de semana, quando dava, o que foi muito difícil para mim. E depois ainda foi uma pós-produção longa.” Conhecido por suas animações, Saldanha sempre quis fazer live action. Colocar atores, gente de carne e osso, na tela. Já o havia feito no episódio de I Love Rio/Rio, Eu Te Amo. Mas um longa...
“Foi difícil, foi complicado, mas consegui. Tinha o meu filme na cabeça, que o estúdio não conseguia ver. Fizemos um screener, uma exibição teste com o filme ainda inacabado, e a criançada embarcou. Conseguiram ver o filme como eu queria. Concluí o Harold e agora é com o estúdio. Claro que quero que o filme vá bem de público. Fiz minha parte, agora é a deles.” O elenco inclui Lil Rel Hovery, de Corra!, e o garoto Bebjamin Bottani, escolhido em teste. “Ele não tinha feito nada importante, mas assim que o vi e ele disse sua primeira fala, senti que havia encontrado meu menino.”
100 dias
E agora Saldanha está embarcado nessa outra aventura, outra live action. O projeto sobre Amyr Klink não partiu dele. Foi-lhe proposto pela Bossa Nova Filmes. Tomou outra dimensão, maior. Esses anos todos, Saldanha veio maturando o que será o filme. Talvez venha a ser seu projeto mais autoral. “O Amyr navegador teve de enfrentar o oceano. Eu também tive minhas travessias. Comecei na publicidade, no Brasil, tive de sair do meu País para perseguir meu sonho nos EUA. Da Costa Leste fui para a Oeste, para Los Angeles. Sempre uma travessia, um mundo novo, um novo desafio.”
Cem Dias terá no elenco Filipe Bragança (o ator que fez Sidney Magal em Meu Sangue Ferve por Você) e Philipine Leroy-Beaulieu (a chefe francesa de Emily Em Paris). “Precisava de uma atriz que fale inglês e português, e ela domina os dois. Viveu nos EUA e foi casada com um brasileiro.” Saldanha começou a filmar em São Paulo, desceu para Santos antes de ganhar o mundo e voltar a São Paulo para nova fase das filmagem, num estúdio especialmente adaptado. Um piscinão com centenas de milhares de litros cúbicos de água que vai abrigar cenas importantes. Sim, o filme terá muita tela verde. “A filmagem será longa, e a pós-produção maior ainda. Mas é um filme que quero muito fazer.”
Animações brasileiras
Por mais tentado que seja por essas experiências em live action, Saldanha carrega o DNA da animação. Interessa-se pelo que se faz no gênero, no Brasil? “Com certeza.” Todo ano a empresa mineira Universo Produção realiza o projeto Cinema Sem Fronteira. Três eventos – em Tiradentes, no começo do ano, o cinema brasileiro contemporâneo, em junho o Cine OP, cinema de patrimônio, e no final de setembro a Mostra Cine BH, o cinema de mercado, com foco na produção latina.
Neste ano, o Cine OP fez uma espécie de revisão da animação no Brasil. Reuniu animadores históricos, debateu projetos de longas, exibiu curtas belíssimos. Saldanha – “Além de mais barato e de poder ser feito artesanalmente, o formato curta favorece a autoralidade, e a animação brasileira é autoral.” Ele próprio, mesmo quando trabalha fora, é 100% brasileiro – autoral. Rio 1 e 2 colocam na tela seu amor pelo Brasil. 100 Dias também colocará.
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