Moisés, Ben-Hur e El Cid, quem diria, foram parar na favela Grande Vitória, a 50 minutos do centro da capital do Amazonas. É lá que Charlton Heston, o astro que interpretou todos esses papéis (e ganhou o Oscar pelo segundo), roda cenas do seu novo filme. Aos 77 anos, que completou dia 4, ele continua uma figura impressionante. Caminha com alguma dificuldade, mas os ombros são aqueles que carregaram o peso do mundo em épicos memoráveis. Heston está no Brasil interpretando o vilão mais hediondo de sua carreira. Ele faz Josef Mengele em Rua Alguém 5555. O filme é uma produção italiana de Gherardo Pagliei para a Gam Film, de Roma, com participação da Focus Film, da Hungria, e da Total Entertainment, do Brasil. O sócio brasileiro conseguiu o apoio da Amazon Film Comisson, indispensável para a rodagem em Manaus. Nada mais surpreendente que visitar a locação de Rua Alguém 5555. De um filme sobre Mengele na Amazônia você espera cenas exuberantes de selva, com homens armados defendendo o carrasco nazista. A locação é essa favela que leva o sugestivo nome de Grande Vitória. Não, não tem nada a ver com vitória-régia (já que estamos na Amazônia). A favela surgiu de uma ocupação bem-sucedida, daí o nome, que comemora a vitória da comunidade. O filme deveria estar sendo feito no Pará. O roteiro do diretor Egidio Eronico, com a participação de Antonella Grassi, Fabio Carpi e Peter Schneider, o autor do romance original, previa cenas numa favela, no Norte do Brasil. A produção já negociava facilidades com o governo do Pará quando entrou em cena a Amazon Film Comission. No filme, como no livro - que se chama Father (Pai) -, um homem descobre que o pai dado como morto no front da Rússia foi na verdade o temível Mengele. Para Hermann, nome do personagem, é uma descoberta devastadora. Como conviver com esse sobrenome, com esse passado? Hermann parte em busca do pai. Encontra-o, ao fim de muita procura, na favela. É a cena que está sendo rodada neste sábado. Hermann encontra o pai integrado no novo ambiente. Quando se defronta com o velho, crianças se debruçam sobre a cerca divisória dos terrenos para saudar o vizinho que para elas é o tio, ou o avô, pela idade. Crianças da própria favela fazem a figuração. O encontro entre pai e filho não se faz sem tensão. O filho cobra uma confissão do pai. Está convencido de sua culpa. O pai se defende com o argumento freqüente dos nazistas. Apenas cumpria ordens. Morreria se não o fizesse. Foram tantos épicos, tantos papéis de salvadores da humanidade. O homem que desceu o Monte Sinai com as pedras da lei (em Os Dez Mandamentos, de Cecil B. DeMille), o herói que venceu a corrida de bigas mais eletrizante do cinema (em Ben-Hur, de William Wyler), o cavaleiro que comandou já morto, amarrado ao cavalo, a decisiva batalha contra os mouros que ameaçavam as terras de Espanha (em El Cid, de Anthony Mann), como uma figura dessas, mitológica, "bigger than life" como dizem os americanos, pode agora fazer um personagem como Mengele? Heston não vacila. "Não fiz só heróis, você sabe. Fui Macbeth, Gengis Khan e o cardeal Richelieu. Por que não Mengele?" Macbeth é a referência fundamental para ele. Heston diz que um ator que não representou Shakespeare, no cinema ou no teatro, não colocou seu talento à prova. Foi Macbeth diversas vezes no palco. Recriou o personagem no cinema (numa versão que circulou pouco). Dirigiu e interpretou Anthony and Cleopatra, que no Brasil se chamou À Sombra das Pirâmides, com Hildegarde Neil no papel da rainha do Egito. Marco Antônio lhe parece um belo personagem, com as vacilações que fazem dele um homem que não está à altura do seu papel na História. O desafio, porém, é Macbeth. Problema moral - Levado pela ambição, e impulsionado pela mulher, Macbeth vira um assassino, um monstro. "Depois de interpretar Macbeth foi fácil encarar o desafio de fazer Mengele", diz Heston. O repórter ainda tenta polemizar: "Shakespeare pode traçar o retrato de um homem que vira um criminoso, mas Macbeth se redime na morte gloriosa; não há redenção possível para um monstro como Mengele." Heston concorda: Mengele, para ele, é um personagem shakespeariano sem a morte redentora de Macbeth. Mas é um personagem fascinante pelas implicações morais que cria para o ator. Como representá-lo? Como um vilão estereotipado? Heston concorda com o diretor Eronico, que cita Orson Welles: "É preciso dar uma chance ao pior inimigo, deixar que ele se explique." Rua Alguém 5555 não é um thriller policial no estilo "quem matou? Quem é o criminoso? Onde está?" É um drama familiar, centrado nas relações entre um pai e um filho que cavaram um abismo entre eles. Como transpor esses limites separadores? É um filme que Heston faz com empenho e que, na verdade, só se tornou possível graças à participação do ator. "Tentei fazer esse filme durante 11 anos", conta o diretor. Tentou vários atores alemães, depois atores ingleses e ninguém queria fazer o papel. "Foi minha diretora de casting em Los Angeles quem teve a idéia de enviar o roteiro a Charlton. Ele se interessou, pediu uma entrevista. Fomos meu produtor e eu a Los Angeles e acertamos tudo rapidamente, encerrando um pesadelo de mais de dez anos." Heston tem feito pouco cinema ultimamente. A última vez que apareceu na tela foi no remake de O Planeta dos Macacos. Ele interpretou a primeira versão, dirigida por Franklin J. Schaffner. Acha que era superior. "A história era melhor. Tudo o que fizeram para atualizar a trama desvirtuou a linha original da história." Desmente que tenha sido uma idéia do diretor Tim Burton chamá-lo para um pequeno papel, no qual ele nem pode ser identificado. Como o velho macaco, pai de Tim Roth, Heston está irreconhecível por trás daquela máscara. Quando muito, se for familiarizado com ele, o espectador poderá identificá-lo pela voz. Pois bem: não foi o diretor de Edward Mãos de Tesoura e Ed Wood que o chamou para uma homenagem. "Foi uma decisão do produtor que o diretor teve de acatar", explica. Houve vários produtores com os quais se deu muito bem. Arthur P. Jacobs, que fez a série do Planeta dos Macacos. Walter Seltzer, que produziu A Última Esperança da Terra, de Boris Sagal, e O Mundo de 2020, de Richard Fleischer, reforçando nele a figura do redentor da humanidade. Samuel Bronston, que fez na Espanha El Cid, de Mann, e 55 Dias em Pequim, de Nicholas Ray. Produtores são importantes, mas Heston prefere destacar os diretores com quem trabalhou. Mann, Ray, Schaffner, King Vidor (em A Fúria do Desejo), Orson Welles (em A Marca da Maldade), Sam Peckinpah (em Juramento de Vingança). Os maiores elogios vão para Wyler, que o dirigiu duas vezes (em Da Terra Nascem os Homens e Ben-Hur). "Foi o maior de todos os diretores. Para os atores era fantástico." Perfeccionismo - Lembra uma cena de Ben-Hur, quando seu personagem volta das galés e visita as ruínas da casa deserta. Ele não diz uma palavra, só caminha por aquele cenário destruído. Wyler fez com que Heston repetisse a cena nove vezes. No fim, o ator lhe perguntou o que queria. Não sabia mais como caminhar em cena, para onde olhar. Já tentara tudo que sua técnica permitia. Wyler então lhe disse que a primeira tomada já estivera perfeita. Mesmo assim, resolveu prosseguir, para testar os limites do ator. "Era um perfeccionista", resume. Nascido numa pequena cidade de Michigan, em 1924, Heston se casou nos anos 40 com Lydia Clarke, com quem começou no palco. Fez muito teatro, autores clássicos (Shakespeare, Ibsen). Cidade Negra, de William Dieterle, de 1950, foi o primeiro filme. Acaba de atuar numa peça escrita por sua mulher, Love Letters. Não acha que seja uma incoerência, após tantos filmes sobre (e contra) o armamentismo e o perigo nuclear, nos anos 60, ter virado o porta-voz da Associação Nacional do Rifle, que defende o direito dos americanos de portarem armas de fogo. Explica que o desarmamentismo de O Planeta dos Macacos, A Última Esperança da Terra e No Mundo de 2020 era coisa dos produtores. Acrescenta que quase todos os seus filmes tratam de violência, o mundo é violento e as pessoas têm o direito de se defender. Como conseqüência, o assunto cai no ataque do terror aos EUA e na ofensiva no Afeganistão. Pela primeira vez, o rosto se torna sombrio: "Vamos ganhar, temos de ganhar", diz. Sua certeza da vitória se baseia na crença de que é uma luta do bem contra o mal. Heston está no Brasil acompanhado de um armário. Seu guarda-costas, Dale Holmes, foi segurança dos presidentes Ronald Reagan e George Bush (pai). O repórter viajou a convite da produção
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