Cinco Vezes Godard é o miniciclo que começa nesta quarta, 5, na Cinemateca Brasileira em homenagem ao cineasta Jean-Luc Godard (1930-2022). A mostra limita-se a obras da primeira fase do cineasta, considerado um dos grandes revolucionários do cinema moderno. Inclui Acossado (1960), seu primeiro longa-metragem, tido como manifesto da nouvelle vague, o movimento de jovens cineastas que pôs em xeque formas tradicionais de fazer cinema, em especial em seu país, a França, e abriu novos caminhos para a chamada “sétima arte”.
Além desse filme-farol, constam dessa amostragem proposta pela Cinemateca (em correalização com a Embaixada da França no Brasil, com a Cinemateca da Embaixada da França e com Institut Français), filmes tão incontornáveis como O Desprezo (1963), Alphaville (1965), O Demônio das Onze Horas (1965) e A Chinesa (1967). Os ingressos são gratuitos e devem ser retirados na Cinemateca (Largo Senador Raul Cardoso, 207) uma hora antes da sessão.
![](https://www.estadao.com.br/resizer/v2/DQY4BJPRFJFJTAPBSNOP56THGU.jpg?quality=80&auth=eff800f8f655067abb91d946a9f85092c0dcc013d39ecd29c22dcc46988d7f64&width=380 768w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/DQY4BJPRFJFJTAPBSNOP56THGU.jpg?quality=80&auth=eff800f8f655067abb91d946a9f85092c0dcc013d39ecd29c22dcc46988d7f64&width=768 1024w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/DQY4BJPRFJFJTAPBSNOP56THGU.jpg?quality=80&auth=eff800f8f655067abb91d946a9f85092c0dcc013d39ecd29c22dcc46988d7f64&width=1200 1322w)
Esse conjunto compacto e diverso de obras reverbera, em seu fundo, a inquietação dos anos 1960, esse estremecimento social que abrangia as artes - o cinema, no caso - mas também a política e os costumes.
Como o abalo sísmico com epicentro na Paris do mês de maio de 1968 jamais deixou de vibrar, embora dado como morto por conservadores de todas as latitudes, as obras que antecipam e incorporam esse espírito rebelde soam surpreendentemente atuais.
Ao vermos Acossado, por exemplo, ficamos surpresos ao lembrar que foi lançado 63 anos atrás! É a experiência que temos, na verdade, com o conjunto da obra de Godard. Seus filmes não envelhecem. Não foram feitos para envelhecer. Parecem sempre jovens, inovadores e insolentes. Como o próprio Michel Poiccard, esse personagem emblemático de Acossado interpretado por Jean-Paul Belmondo.
![](https://www.estadao.com.br/resizer/v2/SETSGCSUIZBQ3ORCXIOHPA24IE.jpg?quality=80&auth=059b48daa2aa3b53c8f69a770249b726146259e264d230a0a7faa5959668a020&width=380 768w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/SETSGCSUIZBQ3ORCXIOHPA24IE.jpg?quality=80&auth=059b48daa2aa3b53c8f69a770249b726146259e264d230a0a7faa5959668a020&width=768 1024w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/SETSGCSUIZBQ3ORCXIOHPA24IE.jpg?quality=80&auth=059b48daa2aa3b53c8f69a770249b726146259e264d230a0a7faa5959668a020&width=1200 1322w)
Para nos situarmos no ambiente em que Godard desperta para o cinema, é preciso lembrar esse grupo de amigos que gostava de ler, escrever, frequentar salas de cinema e jogar fliperama nos bares. Eles se sentiam profundamente insatisfeitos com o cinema feito na época, em especial na França. Para eles, o cinema francês era antiquado, convencional, solene, apoiado em especial em adaptações da gloriosa literatura francesa. Mais tarde, um deles o chamaria, em modo irônico, de “cinéma de qualité”. Cinema de qualidade. Ou cinema de “papai e mamãe”. Cinema para burgueses acomodados e satisfeitos consigo mesmos.
Cinco desses amigos comporiam o núcleo duro da chamada nouvelle vague - a “nova onda”, ou a “bossa nova”, aproximação livre com o que acontecia, de maneira quase simultânea, na música popular brasileira. Além de Godard, entravam em cena Claude Chabrol, Jacques Rivette, Éric Rohmer e François Truffaut. No princípio eram críticos de cinema, acolhidos na Cahiers du Cinéma, revista criada em 1952 por André Bazin, Jacques Doniol-Valcroze e Lo Duca. Depois passaram para o outro lado do balcão, viraram cineastas, todos eles importantes e inventivos, e cada qual à sua maneira.
Godard não foi o primeiro do grupo a estrear em longas-metragens. Foi precedido por Chabrol em 1958 com Le Beau Serge (Nas Garras do Vício, no Brasil). E por Truffaut, que mostrou em 1959, no Festival de Cannes, o doce, contundente e autobiográfico Les Quatre-Cent Coups. Ou, simplesmente, Os Incompreendidos.
No ano seguinte, caberia a Godard fazer sua estreia e bagunçar de vez o mundinho acomodado do cinema francês com Acossado, À Bout de Souffle no original. Como o título sugere, deixou não apenas seus personagens, mas a plateia e a crítica sem fôlego e sem chão. Era simplesmente reinvenção, a fundo, de algo que poderia ser reconhecido, à distância, como derivado do gênero consagrado do filme policial ou noir.
Só que tudo era diferente. Partindo de um roteiro de Truffaut, Godard inova na forma e no conteúdo, subvertendo o tema clássico do amor bandido. Belmondo faz o pequeno marginal que se une à garota norte-americana (Jean Seberg), vendedora de jornais pelas ruas de Paris. Cenas urbanas se alternam a outras no espaço fechado do quarto de hotel ou a bordo do automóvel conversível correndo pelo campo.
Os diálogos são originais, coloquiais, casuais. Nada melosos ou derramados, embora pertençam a um caso de amor. A câmera dá saltos e os cortes da montagem, abruptos e criticados na época pelos conservadores, logo foram incorporados à linguagem cinematográfica. Tudo nele é moderno. Do ritmo das cenas à música de jazz.
As personas cool dos dois amantes, o jeito debochado de Belmondo, com seu nariz de boxeador e chapéu puxado sobre a testa, Jean Seberg com seu corpo de manequim, cabelo curtinho e ar ingênuo, ou talvez malicioso - tudo contribui para o encanto do casal. Tudo é irreversivelmente moderno. Novo. E ser novo era o que se desejava naquela década disposta a passar o mundo a limpo. Por isso, Acossado funciona tão bem como cartão de visitas de um movimento estético que faria a cabeça dos jovens na França e em outras partes do mundo, inclusive no Brasil.
Em O Desprezo (Le Mépris, 1963), o registro muda. Godard adapta, de maneira livre, o romance do italiano Alberto Moravia. Fala de um caso de amor, mas também, e talvez acima de tudo, faz sua reflexão sobre o cinema. Põe em cena ícones como Michel Piccoli e Brigitte Bardot, além do norte-americano Jack Palance no papel de um produtor inescrupuloso e predador. O cineasta alemão Fritz Lang (de M. - O Vampiro de Dusseldorf) interpreta o diretor filmando a Odisseia de Homero. Como locação, a paradisíaca ilha italiana de Capri. Mas essa história, nada amena ou turística, caminha para o desfecho trágico e inesperado.
![](https://www.estadao.com.br/resizer/v2/IWITSDW2ZRBMPLUWFLFN57XSFI.jpg?quality=80&auth=561653e642009a40e6d719360be8f021d87d6b396f2a83c3993093af4c2f912f&width=380 768w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/IWITSDW2ZRBMPLUWFLFN57XSFI.jpg?quality=80&auth=561653e642009a40e6d719360be8f021d87d6b396f2a83c3993093af4c2f912f&width=768 1024w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/IWITSDW2ZRBMPLUWFLFN57XSFI.jpg?quality=80&auth=561653e642009a40e6d719360be8f021d87d6b396f2a83c3993093af4c2f912f&width=1200 1322w)
Godard reuniu para esse filme recursos inusuais em sua trajetória. Seu longa anterior - Os Carabineiros - havia fracassado e ele queria mostrar aos detratores que dominava a linguagem de sua arte. Para muitos, O Desprezo é sua obra-prima.
Entre seus fãs juramentados, destacava-se o cineasta brasileiro Carlos Reichenbach (1945-2012), um dos nossos diretores mais inventivos. Carlão dizia que O Desprezo era o filme da sua vida. Não hesitava: “É o melhor filme do mundo, o que mais vi em toda a minha vida, acho que mais de cem vezes. É o melhor filme jamais feito sobre o meu meio de expressão. E, curiosamente, é um dos filmes mais acessíveis dele, mas é tão especial…”, disse numa entrevista ao Estadão. Muito especial mesmo. O Desprezo é belo e inesquecível, sobretudo quando visto com boa cópia e em tela grande, em todo o seu esplendor visual.
Com Alphaville (1965), Godard investe em outro gênero, a ficção científica. Porém de maneira pouco convencional. Como fizera com o gênero policial, desconstrói este outro. Em soturno preto e branco, mescla a temática da espionagem à do domínio da civilização por um supercomputador. Criatividade é tudo. O, como se dizia na época, “cérebro eletrônico” é representado por um prosaico ventilador. E para quem restringe as primeiras referências de Godard ao do cinema norte-americano, a surpresa é seu diálogo intenso com o expressionismo alemão, em especial com os trabalhos de F.W. Murnau e seu gótico em preto e branco. Além de sequências que parecem inspiradas em Nosferatu, de Murnau, Alphaville lembra também a poética de Orfeu, de Jean Cocteau. Godard inova, mas não teme incorporar influências, pois a sua já é a época descomplexada das citações.
![](https://www.estadao.com.br/resizer/v2/EDKVYDQUDJB7JDKVR5K4JLATPQ.jpg?quality=80&auth=20ee49ac3992092959fc68e6b1f0af46cfa1f02483de9023a6242ca7321a4888&width=380 768w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/EDKVYDQUDJB7JDKVR5K4JLATPQ.jpg?quality=80&auth=20ee49ac3992092959fc68e6b1f0af46cfa1f02483de9023a6242ca7321a4888&width=768 1024w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/EDKVYDQUDJB7JDKVR5K4JLATPQ.jpg?quality=80&auth=20ee49ac3992092959fc68e6b1f0af46cfa1f02483de9023a6242ca7321a4888&width=1200 1322w)
Demônio das Onze Horas (Pierrot, le Fou, 1965) é o reencontro, cinco anos depois de Acossado, com Jean-Paul Belmondo, agora na pele do intelectual casado que embarca em aventura com a bela Marianne (Anna Karina). Foi grande sucesso de crítica. Adaptado (sempre em forma livre) do romance de Lionel White, Obsession, recicla a trama policial em versão renovada do “amour fou” (amor louco), caro a Rimbaud e aos surrealistas.
Marianne é instinto e movimento, ama a música e a dança. Ferdinand prefere a leitura e a meditação. As referências intelectuais, da literatura à pintura, não escondem o motivo central da obra, o impulso ao absoluto pela via do amor. Busca, é claro, que só pode ter desfecho desastroso.
![](https://www.estadao.com.br/resizer/v2/SEUQQ53GOBAXJEW7GFQ4UQJ6BU.jpg?quality=80&auth=6d088808ff84185ccb760ec1bc34326d2aad0cadaeace1c5cb89cf94719979dc&width=380 768w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/SEUQQ53GOBAXJEW7GFQ4UQJ6BU.jpg?quality=80&auth=6d088808ff84185ccb760ec1bc34326d2aad0cadaeace1c5cb89cf94719979dc&width=768 1024w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/SEUQQ53GOBAXJEW7GFQ4UQJ6BU.jpg?quality=80&auth=6d088808ff84185ccb760ec1bc34326d2aad0cadaeace1c5cb89cf94719979dc&width=1200 1322w)
Com boas razões, A Chinesa (La Chinoise, 1967) é considerado um dos títulos mais essenciais da obra de Godard, em especial nesse período. Pelo espírito do filme, convulsivo, compulsivo, falastrão e revolucionário. Mas também pela lucidez capaz de detectar o espírito do tempo e, com meses de avanço, antecipar-se ao movimento estudantil de maio de 1968 que colocou nas cordas a república do general De Gaulle.
![](https://www.estadao.com.br/resizer/v2/Z4TR73XDHJH4NNUPBPXLEQN5YQ.jpg?quality=80&auth=cfc913922a7d48b4bcd7479d79845f3a4492f741ef6784249d0fe8f349d03e75&width=380 768w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/Z4TR73XDHJH4NNUPBPXLEQN5YQ.jpg?quality=80&auth=cfc913922a7d48b4bcd7479d79845f3a4492f741ef6784249d0fe8f349d03e75&width=768 1024w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/Z4TR73XDHJH4NNUPBPXLEQN5YQ.jpg?quality=80&auth=cfc913922a7d48b4bcd7479d79845f3a4492f741ef6784249d0fe8f349d03e75&width=1200 1322w)
No “aparelho” montado por rapazes e moças que se adestram no maoismo, antevê-se muito da generosidade, da imaginação e do voluntarismo político que marcaria aquela e outras gerações mundo afora. A inspiração vinha da Revolução de Mao-tsé Tung, de Cuba e da Guerra do Vietnã. Vinha também do mal-estar difuso presente no meio estudantil e que Godard, de maneira sensível, consegue captar e transformar nessa obra fundamental.
Todos conhecem a frase-clichê sobre os artistas como “antenas da raça”. Com A Chinesa, Godard prova que, entre artistas geniais, mesmo lugares-comuns podem ser em parte verdadeiros.
5 x Godard
Conheça os cinco filmes da fase inicial da carreira do diretor
Acossado
Godard tinha 28 anos quando começou a filmar seu primeiro longa-metragem. Nele, reúne todas as influências que havia tido como cinéfilo e crítico de cinema. Parte de um caso verídico. Um pequeno marginal em fuga mata um policial na estrada. Em fuga em Paris, conhece uma jovem vendedora de jornais e os dois iniciam caso de amor que termina mal.
O Desprezo
Inspirado no romance de Alberto Moravia, traz o casal Paul (Michel Piccoli) e Camille (Brigitte Bardot). Ele é convidado a escrever o roteiro que lhe dará muito dinheiro. Desconfia (erradamente) que a mulher o despreza e tenta impressioná-la. Esse sentimento de inferioridade é a mola propulsora da ação. O Desprezo rivaliza com Acossado, e talvez Viver a Vida, na condição de filme mais amado de Godard.
Alphaville
Filme de ficção distópica, imagina uma cidade dominada pelo computador maléfico Alpha 60. O “herói” Lemmy Caution (Eddie Constantine) tenta destruir a ameaça à liberdade, apaixona-se pela mocinha Natacha (Anna Karina) e a ensina a dizer a frase “eu te amo”, proibida em Alphaville.
O Demônio das Onze Horas
Foi um dos filmes de Godard que mais deram o que falar em seu lançamento. Em especial por Jean-Paul Belmondo, que encarna personagem diametralmente oposto ao de Acossado. Mas algo une os dois filmes: a maneira trágica como pode terminar um caso de amor levado às últimas consequências.
A Chinesa
Godard antecipou os movimentos de maio de 1968 ou, pelo contrário, ajudou a provocá-los com sua história de jovens ativistas? Pergunta impossível de responder. Certo é que A Chinesa reproduz com perfeição o clima de época, com a maneira de falar e agir dos jovens e a maneira como articulavam utopias sociais num discurso político ora inspirador, ora estereotipado.
Programação
5/4. 16h - A Chinesa
5/4. 18h - O Demônio das Onze Horas
6/4. 17h - O Desprezo
6/4. 21h - Alphaville
8/4. 14h - O Demônio das Onze Horas
8/4. 16h - Acossado
Cinemateca Brasileira. Largo Senador Raul Cardoso, 207. São Paulo