Décadas depois, a piada ainda continuava valendo, e Woody Allen tirou proveito dela no recente Um Dia de Chuva em Nova York. A mulher do irmão de Thimotée Chalamet tem a voz de taquara rachada, e o público diverte-se com suas intervenções na trama. Mas o caso de Lina Lamont/Jean Hagen em Cantando na Chuva, de 1952, é diferente. Lina é uma estrela de Hollywood, no período silencioso, e a indústria está vivendo um momento de transformação, com a passagem para o sonoro. Muitas carreiras estão sendo destruídas simplesmente por que astros e estrelas não têm a voz adequada, aos ouvidos do público. Lina não tem. Entra em cena a garota que vai dublá-la, Kathy Selden/Debbie Reynolds. Lina fará de tudo para que ela permaneça anônima, e inversamente os amigos Don Lockwood/Gene Kelly e Cosmo Brown/Donald O' Connor também farão de tudo para que Kathy tenha o reconhecimento que merece.
Tal é o plot, bastante simples, de Cantando na Chuva e até hoje tem gente que se interroga sobre os motivos que fizeram desse filme um clássico e, para muitos críticos e historiadores, o maior, ou pelo menos o mais cultuados dos musicais. Um ano antes, Vincente Minnelli recebera o Oscar de melhor filme, mas não o de melhor diretor, por Sinfonia em Paris/An American in Paris e, antes do final da década, em 1958, receberia os dois, melhor filme e melhor diretor, por outro musical, Gigi. O musical já se consolidara como gênero e, como o western, estava arraigado no imaginário do público. Na Metro, o estúdio que criara uma unidade intensiva só para musicais, com cenógrafos, coreógrafos e bailarinos contratados em tempo integral, o produtor Arthur Freed era o homem que orquestrava todos esses talentos.Veio dele a ideia, vaga, de fazer um musical usando as canções de sua autoria com o compositor Nacio Herb Brown. Para isso foram destacados dois roteiristas da casa, Betty Comden e Adolph Green.
Como as canções eram todas do fim dos anos 1920 e início dos 30, conceberam a ideia de um filme sobre esse período de transformação da indústria, quando os filmes começaram a falar. No roteiro original, a estreia de um filme chamado The Dueling Cavalier vira o maior fiasco porque o público, no alvorecer do sonoro, não aceita mais um filme mudo. Don é o astro e está deprimido, leva Kathy para casa e, na porta, impulsivamente, a beija. A vida vem, a chuva também, e ele sai cantando e dançando - Singin' in the Rain. Conta a lenda que Betty e Green planejavam para a cena do beijo outra canção - Good Morning. Planejavam usar Singin' em outro momento, mas Freed perguntou ao astro, e coreógrafo, Kelly se tinha alguma ideia e ele teria respondido. “Acho que sim. Quando chove, gosto de cantar.” Simples assim. Kelly expôs sua ideia, Freed e o diretor Stanley Donen toparam e nasceu uma cena antológica da história do cinema, não apenas dos musicais.
Donen havia feito com Kelly (e Frank Sinatra) Um Dia em Nova York, de 1949, já com roteiro de Betty e Green, sobre três marinheiros (Jules Munshin, o terceiro) cantando e dançando em Manhattan. O filme ficou tão bom, e a parceria tão harmônica, que Donen e Kelly assinaram o filme juntos, o que voltaria a ocorrer em Cantando na Chuva. O filme não possui uma grande história, são mais fragmentos que se passam durante uma filmagem. Se não inventaram o conceito do filme dentro do filme, as duas duplas (de diretores e roteiristas) conseguiram fazer o mais leve e divertido filme sobre os bastidores de Hollywood. Em geral, são tragédias, como Sunset Boulevard/Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder, de 1950. Diversos números viraram antológicos - Make 'em Laugh, com O'Connor, e o tributo à Broadway e ao filme noir, com Kelly e Cyd Charisse, a estrela que Ruy Castro vai jurar que tinha as mais belas pernas do cinema. Mas o grande número, o melhor de todos, é Singin' in the Rain. Esculpiu a fama de Cantando na Chuva como o filme mais feliz e otimista do cinema. Uma ode à esperança, muito bem-vinda, e necessária, em tempos de pandemia como os que estamos vivendo.
Onde assistir:
- Google Play
- Oldflix
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