Clássico do Dia: 'Deus Sabe Quanto Amei' subverteu a moralidade hollywoodiana

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado', como esse dirigido por Vincent Minnelli e que tem no elenco Frank Sinatra, Shirley MacLaine e Dean Martin

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Vincente Minnelli é autor de uma obra extensa – 33 filmes em 35 anos de carreira. Recebeu duas vezes o Oscar de melhor filme, por Sinfonia de Paris e Gigi, de 1952 e 59, e pelo segundo também o prêmio de direção. Minnelli revolucionou o gênero musical, fez belas comédias, suntuosos musicais, mas talvez tenha sido mais apreciado na França – Cahiers du Cinéma o idolatrava – que nos EUA. Para a intelectualidade norte-americana, era um homem do estúdio – um funcionário de Metro, onde fez quase todos os seus filmes. Andrew Sarris dizia que se preocupava mais com beleza que com arte. Jean Domarchi e Jean Douchet, pelo contrário, sustentavam que era um visionário em busca de um mundo de beleza e harmonia. Minnelli trabalhou sempre no interior do sistema hollywoodiano. Fez filmes que não escolheu. Então, como podia ser reconhecido face à política dos autores? Pelo estilo.

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A obra de Minnelli é toda ela uma afirmação da importância do estilo. Sonho e realidade, o próprio processo de criação são seus temas. Estão nos musicais, nas comédias, no mais forte de seus melodramas – Deus Sabe Quanto Amei/Some Came Running, de 1958. Baseia-se num romance de James Jones, e como toda a literatura desse autor liga-se ao tema da guerra – nesse caso, ao pós Guerra da Coreia. De cara, Dave, com seu uniforme militar, está chegando de ônibus à cidade que havia deixado há 16 anos. Traz na bagagem o manuscrito do novo romance que pretende publicar. Vem com uma prostituta, Ginny, da qual se desembaraça logo depois de chegar. Seu irmão, Frank, é cidadão respeitável. Joalheiro, casou-se com uma rica herdeira, e ela não tem Dave em boa conta. Acha que ele a retratou de forma pouco lisonjeira no livro anterior.

Dave conhece o professor French ea filha dele, Gwen. Fica seduzido por ela, e Gwen retribui. Ele lhe entrega o novo livro, ela encaminha para uma editora. Mas Dave vive no fio da navalha, entre dois mundos, o respeitável de sua família e o das juke-boxes, o mundo de Ginny, com quem se reencontra, e de um jogador de pôquer, ao qual se liga. Bama é seu nome, e como superstição de jogador ele não tira sob circunstância nenhuma, o chapéu. Por amor a Dave, Ginny dispensa o homem que a vem seguindo desde Chicago e Raymond, como se chama, jura que matará Dave. A trama complica-se. Dave acompanha Bama numa disputa em outra cidade. São acusados de fraude. Brigam, vão presos. Para Gwen é demais, mas sua iniciativa tem sucesso e o livro é publicado. Para Dave, pode ser um recomeço. Chega o aniversário da cidade, o clima é de festa, mas Raymond reaparece armado, ameaçando disparar contra Dave. Impulsivamente, Ginny coloca-se na frente, recendo os tiros.

Cena do filme 'Deus Sabe Quanto Amei', de Vincente Minnelli Foto: Warner Bros.

Dois anos antes, com sua cinebiografia de Van Ghogh – Sede de Viver, com Kirk Douglas -, Minnelli já colocara melos into drama ao construir ao narrar a história de seu talvez mais trágico personagem. Segundo François Guérif, o pintor tenta transformar o décor exterior em paisagem interior e, no limite, não consegue reconciliar sonho e realidade. Três anos depois, transformou o remake de Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, com base no romance de Blasco Ibañez – uma família dividida pela ideologia, quando seus integrantes se posicionam em diferentes campos da guerra, no filme de Minnelli, a 2.ª -, num melodrama em que o clima de sonho característico de seus musicais vira o maior dos pesadelos de seu protagonista, Julio Desnoyers. Em todos esses filmes, em todo o seu cinema, Minnelli foi sempre a prova da importância do desenvolvimento da cor e das cenografia na indústria de Hollywood. Sem essas ferramentas, o musical, principalmente, não teria aquele apogeu nois anos 1940 e 50.

E, no caso particular de Minnelli, havia a cor. No longo balé final de Sinfonia de Paris, ele já recriara, com canto e dança, a capital francesa perlo olhar de grandes pintores. Recriou as pinceladas vigorosas e os azuis e amarelos de Van Gogh. Fez de Os Quatro Cavaleiros uma permanente oposição entre o vermelho e o verde, como representações de guerra e mortandade. A cor é essencial em Deus Sabe Quanto Amei. O cenário é urbano, mesmo que seja uma pequena cidade em Indiana. A oposição é entre noite e dia. A noite, com seus luminosos, bares, jogos, mulheres fáceis e vulgaridade. A noite, com suas luzes multicolotridas, é o reino de Dave, de Bama, de Ginny.

Como analista da obra de Minnelli, François Guérif, assinala que a noite em Deus Sabe Quanto Amrei se ilumina quando o dia se extingue. Quando Frank fecha sua loja e Gwen encerra as atividades da escola, recolhe-se à sua casa. Parece óbvio, mas tanto isso é verdade que um raro momento liberador dessa mulher ocorre de dia, quando ela fecha as cortinas para escurecer o ambiente. Minnelli subverte a moralidade hollywoodiana – o dia como repressão, a noite, quando todos os gatos são pardos, como liberdade. Minnelli sempre foi muito preciso na utilização de seus símbolos. Mesmo quando o projeto não era dele, e nessa caso era, buscava os conceitos visuais visuais – figurino, objetos, cenário, cor – mais adequados para servir à trama e aos personagens. Em Adeus às Ilusões, de 1965, a pintora libertária interpretada por Elizabeth Taylor, num momento de fragilidade, veste o poncho colorido para se proteger.

Gwen veste roupas sóbrias, usa coque. O penteado é decisivo na construção da personsagem como uma mulher reprimida. Martha Hyer é quem faz o papel, uma loira fria a a quem o mestre do suspense, Alfred Hitchcock, nunca deu a devida atenção. Gwen é a perfeita encarnação da cidade interiorana, para no tempo. Mesmo quando desfaz o coque e vai para a cama com Dave, não tem estrutura para o tipo de imprevisibilidade que ele traz à sua vida organizada. Shirley MacLaine ainda não havia iniciado a parceria com Billy Wilder, com quem perfeccionou o tipo de personagem fora da curva, fácil ou vulgar, que já interpreta aqui. Aliás, é muito provável que tenha sido Ginny, com sua explosão de humanidade – a mulher que se sacrifica por amor, sem ser a esposa e mãe tradicionais -, que a tenha levado aos grandes papeis em Se Meu Apartamento Falasse e Irma La Douce, em 1960 e 63.

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Mas o que faz a força do Minnelli é a parceria de Frank Sinatra e Dean Martin, como Dave e Bama. Sinatra já era The Voice e um ator dramático avalizado pelo Oscar de coadjuvante que recebeu por A Um Passo da Eternidade, de Fred Zinemann, de 1953, e pelo drogado de O Homem do Braço de Ouro, um Otto Preminger aclamado, de 1956. Aos 43 anos, Sinatra já tinha o rosto marcado, as rugas que definiram sua persona de homem maduro, cínico e asmargurado. Nos anos 1960, teve grandes papeis em filmes de John Frankenheimer (Sob o Domínio do Mal) e Gordon Douglas (Crime sem Perdão e os dois Tony Romes).

Assim como o coque que define Gwen, o chapéu é a marca de Bama. Durante todo o tempo, o espectador se pergunta se alguma coisa fará esse homem descobrir a cabeça. Ele tira o chapéu. Toda a arquitetura do filme converge para esse momento de respeito. O tributo a uma grande mulher. Sempre houve controvérsia quanto à sexualidade de Minnelli. Seu biógrafo, Emmanuel Levy – em Hollywood's Dark Dreamer - diz que ele era abertamente gay em seu começo, em Nova York, e que Hollywood levou-o ao armário. Sua celebração do feminino (Ginny) se faz num filme em que a grande ligação é masculina (Dave e Bama). Minnelli foi casado com Judy Garland, a quem dirigiu em grandes musicais nos anos 1940 (Agora Seremos Felizes e O Pirata) e com quem teve a filha Liza Minnelli. Morreu em 1986, aos 83 anos.

Onde assistir:

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