Ex-crítico, ex-assistente de Marcel Carné (em Os Visitantes da Noite, de 1942), Michelangelo Antonioni tornou-se diretor a partir de Gente del Po, de 1943. Revelou-se um documentarista acurado, com grande senso de observação, e do espaço. Essa importância dramática do cenário, seja uma paisagem ou um interior, sempre o acompanhou e até foi-se aprimorando, cada vez mais. Como diretor de longas de ficção, Antonioni distanciou-se do neo-realismo clássico para seguir a própria via. Tornou-se um cronista dos sentimentos, voltado ao tema do casal (hetero).
Crimes D'Alma, Os Vencidos, La Signora senza Camelie possuem imperfeições, mas já revelam um olhar - Lo Sguardo di Michelangelo, sem que isso tenha a ver com o documentário de mesmo nome, dele mesmo, sobre outro Michelangelo, o Buonarotti. As Amigas, de 1955, baseado em Cesare Pavese, e O Grito, dois anos mais tarde, foram saudados como acontecimentos. Mulheres, entre elas. E Aldo, o operário, num itinerário físico e sentimental que revela a alienção de seus sentimentos. Na época, fez sensação a forma como Antonioni, pegando um durão norte-americano, o ator Steve Cochran, conseguiu esvaziá-lo da força bruta (da fisicalidade?) para revelar uma fragilidade interior. E a paisagem – Antonioni voltou ao vale do rio Pó para mostrar que não havia mudado muita coisa desde 1943, embora toda a Itália estivesse em processo de transformação, impulsionado pelo dinheiro que os EUA despejaram na península, para conter o comunismo. Nos anos 1970, Ettore Scola faria Nós Que nos Amávamos Tanto. Antonioni, muito pelo contrário, nunca acreditou que o amor fosse uma possibilidade.
O Grito permanece uma raridade na obra de Antonioni. Aldo é operário. Mais tarde, nos anos 1960 e 70, ele voltaria aos personagens masculinos – em Blow-Up e O Passageiro/Profissão: Repórter -, mas sua grande fase dos 60 é basicamente centrada em personagens femininas, no topo da pirâmide social. Antonioni filmou a alta burguesia. Ninguém está dando murro em seus filmes pelo pão nosso de cada dia. Foram-se os desempregados e aposentados de Vittorio De Sica. É outro segmento, outro estrato social. E o que lhe interessa é a análise dos sentimentos. A alienação amorosa. Entre 1959 e 61, ele criou a trilogia da solidão e da incomunicabilidade. Três filmes, um a cada ano. A Aventura, A Noite, O Eclipse. Seguiram-se o episódio de Tre Volte Donne, em que a ex-imperatriz do Irã, Soraya, tentou construir uma carreira como atriz e, em 1963, o primeiro experimento dele com a cor – O Deserto Vermelho, que, no Brasil, se chamou, vá saber por quê, O Dilema de Uma Vida.
A Aventura foi um dos três representantes da Itália na competição do Festival de Cannes de 1960. Concorreu com A Doce Vida, de Federico Fellini, que recebeu a Palma de Ouro, outorgada pelo júri presidido pelo escritor Georges Simenon. (O terceiro era Ombre Bianchi, Sangue sobre a Neve, o filme sobre esquimós de Nicholas Ray, apresentado sob a bandeira italiana.) Enquanto Fellini foi aplaudido, Antonioni foi vaiado. O filme fracassou na bilheteria, estava adiante do seu tempo. O júri atribuiu-lhe uma menção 'pela marcante busca de uma nova linguagem cinematográfica'. Era o que ele estava fazendo. Os franceses entenderam. O culto começou na França. À frente do elenco, Monica Vitti e Gabriele Ferzetti. Ela vinha do teatro, ele já tinha um nome no cinema.
A trama, reduzida ao básico, é muito simples. Um cruzeiro por ilhas do sul da Itália. Vilarejos, o mar. Um casal, Anna e Sandro. A amiga, Claudia. Outros casais, entediados. Bastam poucas cenas para que o espectador perceba que algo não vai bem entre Anna e Sandro. Nada de gritos nem ranger de dentes. Ela simplesmente desaparece, fica na tela menos de um terço dos 145 minutos de duração do filme, o suficiente para que Lea Massari, uma das divas italianas da época, marque presença. Claudia é a primeira a perceber a ausência - “Anna dov'è?” E, quando ela pergunta, talvez seja a primeira vez que olha diretamente para Sandro. O grupo separa-se, Claudia e Sandro são interrogados por policiais, percorrem a Sicília, aproximam-se. Amam-se? Não, a crítica de Antonioni é justamente à impossibilidade de amar.
Antonioni nunca se preocupou em esclarecer o que ocorreu com Anna. “Me disseram que ela se suicidou, mas não creio nisso.” Uma vaga pista – o som de uma lancha na trilha, logo antes da constatação do desaparecimento. Em A Noite, outro casal, Giovanni e Lidia, Marcello Mastroianni e Jeanne Moreau, também está em crise. Vão a uma festa. Ele persegue Valentina, interpretada pela musa de Antonioni nessa fase de sua carreira, a Claudia de A Aventura - Monica Vitti, e ela está morena. Pela manhã, o casal extenuado senta-se na grama, no jardim da casa da festa. Lídia lê uma carta de amor. Giovanni pergunta quem é o autor? Nem se lembra que a escreveu, anos atrás. Em O Eclipse, mais um casal, Vittoria e Piero, Monica e Alain Delon. Ele trabalha na Bolsa, onde a adrenalina do pregão insensibiliza as pessoas. Ganhar ou perder dinheiro não significam mais nada. Vittoria segue o homem que perdeu tudo, e ele desenha num pedaço de papel.
No final, a câmera percorre os lugares onde Vittoria e Piero se encontraram e agora estão vazios. Antonioni, nos filmes precedentes, mostrou auroras que não traziam nenhuma promessa de dias melhores. Encerra O Eclipse com um entardecer. Embora não seja um filme catástrofe, o eclipse é simbólico - da humanidade. As pessoas desaparecem no final de O Eclipse, como Anna sumiu no primeiro filme da trilogia. Fecha-se um círculo. Os vazios nos planos, que vinham expressando o isolamento das figuras em cena, adquirem a dimensão que, na metafísica, se chama de ontologia. Mais que observador, Antonioni era um estudioso do comportamento humano. No cinema dele, a infelicidade é o destino natural do homem. E isso pode levar a uma espécie de deslocamento da realidade, que vira neurose com a Monica Vitti, sempre ela, de O Deserto Vermelho.
É uma das mais emblemáticas cenas filmadas por Antonioni. Além da cor – ele pintava cenários para expressar estados d'alma -, tem a imagem de Giuliana/ Monica investindo contra o sanduíche do operário, pelo qual está disposta a pagar uma fortuna, como se fosse a coisa mais concreta do mundo. Desde Crimes d'Alma, e através da trilogia, Antonioni já vinha construindo a ideia de uma classe despolitizada, sem outro objetivo na vida que não a busca da felicidade no amor. Como o amor, para ele, é impossível, não há como ser feliz. O resultado só pode ser o vazio. Nos filmes de Antonioni, especialmente na trilogia, os personasgens estão sempre buscando maneiras de matar o tempo. Lídia caminha sem destino por Milão. O olhar angustiado, a boca amarga da Moreau expressam o tédio.
Antonioni já vinha com essa ideia, mas foi em A Aventura que se tornou um grande artista, senhor de seus meios. Como se contam histórias sem histórias? Existe o desaparecimento de Anna, mas Sandro e Claudia não estão numa intriga policial – que existia, vagamente esboçada, em Crimes D'Alma. Lá, a mulher tenta convencer o amante a matar o marido. O mesmo ponto de partida de Obsessão, de Luchino Visconti, de 1942, toma outro rumo com Antonioni. Quando o marido morre num acidente (que não é explicado) a culpa mina a relação dos amantes. Em A Aventura, Claudia e Sandro começam gritando por Anna nos rochedos. Terminam por desistir dela, imersos na fragilidade da própria relação. Antonioni afirmou, meio irônico, meio sério, que se o filme é um policial, então tem de ser visto de trás para a frente. Tudo o que deve unir Claudia e Sandro, na verdade, os separa. O final os coloca no mesmo impassse de Anna e Sandro no início. O homem diante de um muro, e aqui a mulher o conforta com seu toque.
Numa breve cena, um raro diálogo que pode até passar despercebido, Claudia menciona sua origem pobre. Ela está ali, mas não é (daquele meio), e isso faz toda a diferença. Seu gesto de amparo. Antonioni dizia que Claudia e Sandro estão ligados pela compaixão, pela resignação e pelo que ainda lhes resta de força vital. Poucos filmes causaram tanto impacto como A Aventura. Marcou uma etapa importante na tentativa do autor de levar a narrativa para dentro dos personagens, por meio de um realismo definido como interior. A literatura já vinha fazendo isso – Virginia Woolf, James Joyce. O cinema, quando queria revelar o interior, recorria a vozes off. Mesmo Ingmar Bergman fez isso em Morangos Silvestres, seu clássico de 1957. Os solilóquios do professor Isak Borg/Victor Sjostrom. Antonioni reduziu o diálogo ao mínimo. Tudo é dito sem palavras. O cansaço na busca de Claudia e Sandro não é só físico, é emocional. Incomunicabilidade, solidão, tédio, vazio.
Fellini ganhou a Palma colocando ruidosamente os paparazzi no mapa e a Croisette, naquele ano, foi mais que nunca um mundo efêmero de sonho e prazer. Antonioni estava na contramão. Impôs um cinema de silêncios, introspectivo e radical, feito, segundo Jean Tulard no Dicionário de Cinema, 'com liberdade narrativa e precisão técnica'. No centro de tudo, a Vitti. Contida, crispada, tensa. Única. Lucia Bosè e Eleonora Rossi-Drago já haviam expressado essa insatisfação nos filmes anteriores. Valentina Cortese, a Nene de As Amigas. Mas foi em Monica Vitti que Antonioni encontrou a atriz perfeita. A mulher ideal? Casaram-se, não durou muito. Teria ido contra tudo aquilo que os filmes anunciavam. Quem poderia imaginar que aquela mulher escondia outra? Dino Risi, que talvez tenha sido o Antonioni do humor – uma angústia atravessa Aquele Que Sabe Viver e Férias à Italiana -, provou que ela era uma comediante fantástica em Nós, Mulheres, Somos Assim, de 1971. Antonioni morreu em 2007, aos 94 anos. Mais de 20 anos antes, um acidente vascular-cerebral deixou-o parcialmente paralítico, e impossibilitado de falar. Nem por isso deixou de filmar. Em 1995, recebeu um Oscar honorário da Academia de Hollywood.
Onde assistir:
- Looke
- Belas Artes à la Carte
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