Clássico do Dia: 'Estranha Passageira', um filme com Bette Davis que encantou durante a guerra

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado', como este de 1942, de Irving Rapper, sobre as reviravoltas de uma solteirona que, após um colapso nervoso, passa a cuidar da filha do amado

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É conhecida a história segundo a qual Bette Davis, após receber seu primeiro Oscar – por Dangerous/Perigosa, de 1935 -, colocou na manhã seguinte a estatueta da Academia de Hollywood na bolsa e rumou para o escritório da Warner, que a tinha sob contrato. Como uma de suas heroínas de faca na bota, ela disparou pela sala do todo-poderoso Jack Warner, colocou o Oscar na mesa dele e exigiu melhores papeis. Era um tempo em que os donos de estúdio eram deuses. Na recente cinebiografia que valeu o Oscar de melhor atriz a Renee Zelwegger, você viu o que Louis B. Masyer fez com a pobre Judy Garland.

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Verdadeira ou não, a história faz parte da lenda de Bette e deu certo. A Warner passou a lhe oferecer scripts cada vez melhores. Bette iniciou a parceria com William Wyler, recebeu o segundo Oscar por Jezebel em 1938, e fez com ele, já nos 40, A Carta e Pérfida. Lembram-se de James Cameron, gritando no Oscar – que recebeu por Titanic, em 1998 – 'king of the world'? Bette poderia ter feito o mesmo. Queen of Hollywood. Seus dois filmes com Wyler estão entre os melhores da década, mas a quintessência dos filmes de Bette nos 40's é Now, Voyager, de 1942, que ela fez na Warner (onde mais?), com direção de Irving Rapper. No Brasil, chamou-se Estranha Passageira.

Muita coisa, quase tudo, mudou no cinema. Convenções, tecnologia. Uma cena antológica, que causou furor na época, hoje talvez não impressione tanto, mas ainda é possível perceber a carga erótica do gesto. Paul Henreid, aquele mesmo que faria no ano seguinte, na Warner,o clássico romântico Casablanca, interpreta Jerry. Bette é Charlotte Vale. Estão num transatlântico. Jerry coloca dois cigarros na boca, acende-os simultaneamente e estende um a Charlotte. Só isso. Não dizem nada picante, aliás, não vão muito além disso. Toda a sugestão de sexo entre eles não passa desse gesto simples, mas que há quase 80 anos pareceu ousado às plateias de então. Eram, vale lembrar, plateias predominantemente femininas, de mulheres asfastadas de seus homens pela guerra.

Cena de 'Estranha Passageira' Foto: Warner

Na trama, Charlotte é filha de uma matriarca autoritária de Boston. Gladys Cooper faz o papel. É durona. Leva a filha na rédea curta. Bette/Charlotte sofre um colaspso nervoso. A cunhada lhe recomenda um médico. Ele encaminha Charlotte para análise num instituto psiquiátrico. Ela se transforma. De patinho feio, vira cisne – Charlotte vira Bette, a maior estrela no firmamento de Hollywood no período. Charlotte parte de férias no transatlântico. South America! Conhece Jerry. Enamoram-se em conversas e passeios no convés, ao luar – uma lua de estúdio. Chega o momento crítico – Jerry confessa que é casado. Charlotte volta para casa, isto é, para a mãe. Recusa um casamento milionário, a mãe fica furiosa, morre num ataque. Charlotte sente-se culpada, tem novo colapso nervoso. Volta ao instituto psiquiátrico. E, agora, olhem o engenho no roteiro de Casey Robinson.

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Charlotte aproxima-se de uma garota, de quem se torna amiga. Para ir logo aos fatos, Tina/Janis Wilson é filha de Jerry e precisou ser internada por causa da mãe cruel, o que também explica o quase adultério do pai. Charlotte e Jerry reaproximam-se. E, embora de novo não ocorra nada entre eles, tudo muda. Charlotte assume que sua história com Jerry não vai rolar, mas vira a mãe abnegada de que Tina precisa. Imagine essa história em 1942. Amor, dignidade, renúncia. Com os maridos, namorados, noivos, filhos no front, esses eram sentimentos que as plateias femininas podiam perfeitamente entender, e compartilhar. O filme é tão bem feito – e a trilha de Max Steiner é decisiva para o clima – que até hoje não nega fogo.

Uma soap opera – caça-lágrimas. O mais impressionante é Bette. Com fama de durona, e personagens transgressoras, ela admiriu a fama de grande malvada das telas. Em 1950, All About Eve, de Joseph L. Mankiewicz, sobre os bastidores do teatro, venceu os Oscars de melhor filme, direção e roteiro (do próprio Mankiewicz). No Brasil, chamou-se A Malvada e a surpresa é que a personagem título não era Bette e, sim, a secretária, Eve/Anne Baxter, que faz de tudo para usurpar seu lugar, no palco e na vida. Bette defendia seus direitos, não levava desafoto para casa – e até era grande interpretando megeras (O Que Terá Acontecido a Baby Jane?), de Robert Aldrich, de 1962 -, mas, quando necessário, revelava seu lado mais sensível e se comportava como manteiga derretida.

Onde assistir:

  • O filme está disponível em DVD

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